Pandemias e distopias

COVID-19 Confinamento 2025

Será assim em 2025? Não teremos outra alternativa senão forçar ao confinamento aqueles teimosos que insistem que este vírus é «uma gripezinha», ou, nas palavras inspiradoras do presidente Bolsonaro, «apenas um resfriado», para conter o vírus até haver uma cura?

A imagem tem a sua história, e, dado que provavelmente ainda tem copyrights, mais vale dar-lhe o devido crédito. Trata-se duma banda desenhada francesa, Péché Mortel, da autoria de Béhé & Toff, e publicada pela Dargaud em 1989 — salvo erro, o mesmo ano em que me ofereceram o 1º volume desta BD (na altura só existia o primeiro…), que, se a memória não me falha, foi prenda dum meu grande amigo dos tempos da universidade, grande «conhecedor» de banda desenhada.

É preciso perceber o contexto; os autores conhecem-se em 1986; começam a preparar o cenário e a narrativa em 1987; e terminam esta BD em 1988 — altura em que estávamos em plena pandemia do HIV, retrovírus causador da SIDA, numa altura em que já se sabia alguma coisa sobre o vírus — nomeadamente a sua forma de transmissão — mas ainda não havia propriamente um tratamento eficaz (como já há hoje em dia). Ainda havia o estigma de que a doença só «atacava» homens homossexuais (e não mulheres!), ou, no mínimo, homens sexualmente promíscuos; ainda havia um certo cuidado generalizado relativamente à não partilha de navalhas de barbeiro ou de seringas, etc; e embora «o pior já tivesse passado» — no sentido em que o número de novos casos já estava estabilizado, ou a diminuir, pelo menos em termos de médias mundiais, ostracisavam-se aqueles que tinham contraído SIDA, independentemente da maioria não ser sexualmente promíscua (apenas teve «azar» com uma transfusão de sangue, ou cortou-se com uma tesoura que tinha sido usada por alguém que mais tarde se ficou a saber que era portador de HIV, etc.), de ambos (ou todos…) os géneros, e — infelizmente — incluindo também muitas crianças contaminadas pelas mães à nascença…

Neste contexto, persistia a dúvida de que tipo de sociedade iríamos ter num futuro breve (a narrativa dá a entender que estamos «15 anos no futuro», ou seja, no início do séc. XXI, mas livros posteriores colocam o futuro mais distante) em que a promiscuidade sexual voltaria a ser condenada moralmente, influenciando também o contexto político: na história «alternativa» da BD, o vírus não é o HIV (poderia ser considerado politicamente correcto) mas é chamado de «VRH» («retrovírus humano», se não me falha a memória), e embora se transmita de forma semelhante ao HIV, os sintomas aparecem muito mais depressa após transmissão/contágio, e, tal como para o HIV, não há cura (nem sequer tratamento efectivo), embora a narrativa gire em torno de grupos de cientistas à procura dum tratamento e os conflitos com os políticos, alguns interessados em ganharem dinheiro com a «vacina», outros mais interessados em que não haja vacina, para que haja uma «purificação» da sociedade: na história, são frequentes as marchas mais-ou-menos pacíficas, lideradas por membros da extrema-direita em roupa branca vagamente alusiva ao KKK, gritando, como palavras de ordem, «Saúde para todos», e pressionando os políticos a encarcerarem prostitutas e pessoas sexualmente promíscuas; a banirem a «roupa indecente»; e assim por diante.

A dada altura, os governos começam a isolar partes de cidades em ghettos de «confinamento obrigatório» para todos os que testam positivo ao «VRH» (assim como todos os que, por questões políticas, é «conveniente» desaparecerem de vista — o que inclui alguns políticos, activistas LGBTQI+, etc.) — ilustrado na imagem que acompanha este artigo. Por outras palavras: o pretexto da «saúde pública» torna-se conveniente para a extrema-direita impôr a sua visão para a sociedade — uma sociedade onde todos os «indesejáveis» são forçados a viver em ghettos, em cujo interior não há nem lei nem ordem, mas também não há condições mínimas de habitabilidade; mas como está tudo por trás de paredes… ninguém vê o que se passa!

O primeiro volume da série — o único que eu tenho! — termina num tom vagamente optimista. Apesar das notícias mostrarem que as próximas eleições serão provavelmente ganhas pela extrema-direita — as personagens principais não se mostram de todo surpreendidas, dadas as «maquinações» do governo presente, mais preocupado em ganhar dinheiro com as potenciais vacinas do que em curar as pessoas — o cientista que é uma espécie de anti-herói na BD, e que no final se «rebelia» contra o establishment que controla o laboratório para o qual trabalha, e, como consequência, é forçado a exilar-se/esconder-se das autoridades — acaba por conseguir realmente desenvolver uma «cura» (curando-se a si próprio numa das últimas tiras). Sabemos, pois, que há esperança para a humanidade: a doença não irá exterminar a espécie humana — se uma pessoa conseguiu desenvolver uma cura, será natural pensar que outras também o consigam fazer — mas colocou-a à beira do caos civilizacional, deixando a oportunidade para a extrema-direita tomar legitimamente o poder e fazer tabula rasa da corrupção dos governos anteriores… mas a que preço?

Infelizmente nunca li o resto da série, pelo que não sei dizer o que é que os autores pensam sobre o assunto. Depois de pesquisar um pouco na Internet, percebi que os autores — e a Dargaud — não tinham a certeza do potencial sucesso da BD (que acabou por ser bem acima do previsto e que leva a que, uma década mais tarde, Béhé & Toff lancem mais três volumes da série), pois tocava em três temas muito sensíveis: a estigmatização e ostracismo perante aqueles que são doentes (ao ponto de os isolar da sociedade em ghettos urbanos); a «politização» do desenvolvimento de uma cura; e o ressurgimento da extrema-direita como «salvação» de uma sociedade moral e economicamente corrupta, propondo uma «alternativa social» capaz de manter a saúde e a ordem pública, quer haja vacina ou não.

E, de facto, nos finais da década de 1980, estes três temas eram «explosivos»; embora seja discutível a existência de uma «politização» em torno de uma cura para a SIDA — na BD é explícita; na realidade, não sabemos — o certo é que hoje em dia temos medicamentos para devolver a qualidade de vida àqueles que testaram positivo ao HIV. A «cura» ainda não existe — quase!… está-se mesmo na iminência de uma descoberta científica radical — mas, tal como acontece com outros tipos de doenças «potencialmente incuráveis» (pensemos na diabetes tipo 1, em diversos tipos de cancro, nos problemas cardiovasculares ou de colestrol herdados geneticamente), hoje em dia temos tratamentos adequados para manter os sintomas «sob controle» e a esperança de vida de alguém que seja seropositivo é, hoje em dia, apenas muito ligeiramente inferior à da média da população, e o mesmo se passa com todas estas doenças e condições genéticas que podem ser incuráveis, mas são pelo menos «controláveis» a longo prazo sem grande deterioração da qualidade de vida. Ou seja: realmente nos anos 1980 nada disto era verdade, e não se sabia sequer se seria possível «tratar» as pessoas infectadas com HIV; os poucos medicamentos existentes (por exemplo, o AZT) não eram 100% eficazes em 100% das pessoas, e, quando o eram, tinham efeitos secundários muito desagradáveis (mas sempre melhores do que uma morte penosa e dolorosa, como aconteceu a quase metade das pessoas infectadas em meados dos anos 1980).

A estigmatização e ostracismo, no entanto, persistem. Ainda hoje em dia a SIDA é automaticamente associada aos homossexuais, às pessoas sexualmente promíscuas, e aos drogados. 35 anos depois do «pico» da pandemia da SIDA, há ainda uma réstia de ressentimento contra as pessoas seropositivas — apesar de, actualmente, serem muito facilmente detectadas e colocadas sob um programa estrito de medicação, tornando-se inofensivas para a população em geral. Ao contrário do que acontecia nos anos 1980, o desenvolvimento de doenças oportunistas que não só debilitavam o organismo das pessoas seropositivas, como tinham manifestações físicas esteticamente desagradáveis — cancro de pele, emagrecimento doentio, etc. — pelo que era «fácil» ostracizar estas pessoas: bastava olhar para elas que sabíamos que estavam infectadas. Aliás, herdamos dessa época a expressão «sidoso», um pedaço de jargão que já nada diz às gerações actuais, pois, hoje em dia, felizmente, as pessoas seropositivas com acesso a medicação têm um aspecto físico precisamente igual a qualquer outra pessoa; tudo o que precisam de fazer é ter um pouco mais de cuidado e atenção no seu dia-a-dia (tal como um diabético que não se pode «esquecer» de medir regularmente os índices de glicemia e tomar a dose de insulina apropriada).

Mas a imagem da prostituição masculina, associada à droga, a uma vida degenerada levada nas ruas, e à decadência física, que foi exarcebada pela comunicação social nos anos 1980 e mesmo depois disso, ficou gravada nos substractos mais profundos do nosso inconsciente colectivo. Em países como Portugal, os anos 1990 trouxeram a despenalização da droga e a consequente reclassificação dos toxicodependente como doentes e não como meros viciados. E, sendo doentes, merecem tratamento — pelo serviço nacional de saúde. Mal ou bem (e infelizmente não somos perfeitos!), a abordagem portuguesa continua, ainda hoje, a ser o modelo de referência para o «problema» da toxicodependência — apesar de existirem países (ou estados dentro de países federais) que descriminalizem completamente a droga, esta mudança de mentalidade, a passagem do «degenerado social» que se torna em «doente», necessitou de muitos e muitos anos, mas deu frutos. Mas não foi de todo «pacífico». Afinal de contas, é muito mais fácil classificar a droga — ou a prostituição — como pecado, e, numa perspectiva maniqueísta, a SIDA era a forma da divindade «condenar» todos aqueles que eram «perversos» e que não tinham lugar na sociedade. De uma perspectiva católica, por exemplo, a melhor forma de evitar a SIDA era a abstinência sexual — aqueles que não o faziam expunham-se a si e aos seus a um risco «evitável». A SIDA foi a resposta «divina» à promiscuidade sexual resultante dos diversos movimentos de libertação, de emancipação, de direitos civis, que começaram nos anos 1960 e que foram progressivamente concretizados nos anos 1970 — altura em que a «emancipação sexual» atinge um dos seus picos, sendo também nessa altura que o HIV mais se propaga, embora, na maior parte dos casos, se mantenha «dormente» durante uma década até manifestar os sintomas mais graves — e daí a «retribuição divina», que vem apenas em meados dos anos 1980.

Em países como os Estados Unidos, nos anos 1990, há justamente um «reacender» religioso dos grupos cristãos evangélicos, que persiste até aos dias de hoje: é graças ao apoio dos evangélicos americanos que Trump consegue ganhar as eleições em 2016. Apesar de Trump não ser propriamente o «arquétipo» da comunidade evangélica, Mike Pence, o seu vice-presidente, é justamente escolhido por representar esse «ideal» arquetípico, propondo à sociedade americana um retorno aos «antigos valores» que eliminem a «perversão» que cresceu no seu seio a partir dos anos 1960 — desde a perversão sexual, claro está, mas à própria perversão da linguagem (o «politicamente correcto»), à perversão das estruturas sociais, ao enfraquecimento das estruturas religiosas (ou, pior, à emergência da Igreja Católica Apostólica Romana como principal denominação cristã!… que, em certa medida, até é pior aos olhos dos evangélicos do que a proliferação de ateus e cépticos)… um rol incontável de «ameaças» à sociedade, ou pelo menos à utopia presente na mente de muitos americanos daquilo que consideravam a «época dourada» dos EUA.

Mas esta visão não é exclusivamente americana. Em França, uma considerável parcela da população — serão pelo menos 1 em cada 4 franceses — olham para os Trinta Gloriosos Anos como o apogeu da «civilização francesa»: um período (coincidente com o mesmo período americano) que começa no pós-guerra e que termina justamente pouco depois da crise da OPEP de 1973. Este é um período em que a França ainda é, em certa medida, uma potência colonial; em que os «imigrantes» ainda não se deslocaram para o Hexágono (mas continuam confinados às «províncias ultramarinas»); em que não só há trabalho para todos, mas também os salários estão sempre a crescer, e em que a prosperidade é generalizada — mas também (apenas aparentemente, já que a realidade não é essa, é apenas imaginada) um período em que há «moderação dos vícios», sejam eles a droga, o sexo, o jogo… — e em que os políticos não são vistos como corruptos (!) e apenas trabalham para o bem-estar da população em geral (ou seja, aqueles que sejam relativamente mais brancos que os restantes, que são mantidos preferencialmente longe das cidades francesas). A quebra com esta visão de um passado glorioso e o descontentamento dos vários extractos da população que deixaram de ter acesso a esta «revolução silenciosa» permite que Jean-Marie Le Pen consiga 15% do voto nas presidenciais de 1988 e 1995, com uma mensagem anti-imigração e anti-Europa, conveniente designados como os «culpados» da destruição do «sonho francês».

Péché Mortel é justamente desenhado durante a campanha presidencial de Le Pen e reflecte a preocupação dos autores — que não é imaginada, mas bem real — com o surgimento duma extrema-direita bem organizada e forte; Le Pen tem o mérito dúbio de ter conseguido, no início dos anos 1970, unificar os vários movimentos de extrema-direita, ultra-conservadorismo, e monarquia de direita, sob a égide de um partido único, a Front Nacional — unificação esta que, em 1974, dá poucos resultados, mas que em 1988 claramente preocupa os autores da BD.

Não sei se Béhé & Toff são os primeiros a apontar esta ligação entre a saúde pública durante uma pandemia, a corrupção instalada nas camadas governativas aliadas a um capital que pouco se preocupa com o bem-estar da população mas apenas em obter lucro da venda de vacinas, a estigmatização e ostracismo imposta sobre aqueles que são contaminados com uma doença que tem origem em «comportamentos moralmente questionáveis», e, finalmente, a ascensão do populismo de extrema-direita como «única» solução para a resolução de todos os problemas sociais. Confesso que é o único exemplo que conheço, e, não tendo lido os restantes livros da série, também não sei como é que Béhé & Toff prosseguem com a narrativa.

Mas dada a situação que presentemente vivemos, trata-se de um livro com uma narrativa que se encaixa que nem uma luva nesta estranha realidade do presente — mais bizarra e mais inacreditável do que as visões dos autores do cyberpunk, escrevendo justamente nos anos 1980 (movimento em que podemos perfeitamente «encaixar» também Béhé & Toff — com as devidas diferenças para a ficção científica de língua francesa, que tem as suas características únicas, muito diferentes da anglo-saxónica). Em especial, as maquinações políticas sobre os cientistas parecem ter saído da Casa Branca de 2020 — embora em 1988/9 pudéssemos achar a visão distópica de Péché Mortel «muito exagerada», hoje em dia vêmo-la como banal, algo que «todos já conhecemos e não é novidade nenhuma». A «novidade», claro está, é olhar para o que se pensava em 1988 e ver como dois autores de BD conseguiram fazer uma «previsão» tão acertada da forma como as sociedades humanas pensam e agem perante determinadas crises — mesmo tendo em conta que não foi a SIDA que desencandeou a situação que actualmente vivemos em 2020, mas sim um vírus completamente diferente (embora, tal como o HIV, seja difícil de «atacar» com os recursos científicos de que dispomos no presente).

Joseph Béhé desenhou várias BDs, mas Péché Mortel foi a primeira que publicou, após ter conhecido Toff em 1986. Toff não é um autor de FC, mas sim investigador científico, começando a sua carreira no INSERM (o Instituto Nacional da Saúde e da Investigação Médica, em França), depois passando a estudar neurociências em Grenoble, e finalmente neuroquímica em Estrasburgo, onde preparava o seu mestrado nessa área quando conheceu Béhé (estudante de Belas Artes, também em Estrasburgo — cidade que naturalmente se torna o cenário de Péché Mortel). Toff faz, pois, parte de uma classe vasta de investigadores científicos com conhecimentos profundos da temática científica sobre a qual baseiam a sua narrativa de ficção especulativa (uma extensa lista que inclui Isaac Asimov e Greg Bear — justamente nas áreas da bioquímica).

Talvez por isso os processos descritos pelos autores relativamente à investigação científica numa área «politicamente sensível» nos pareça tão realista e convincente — não é de excluir, de todo, que Toff tivesse justamente passado por situações semelhantes durante a «crise» da SIDA.

Não encontrei nenhuma tradução de Péché Mortel editada em Portugal; na Internet podem-se encontrar facilmente versões em espanhol e alemão (e penso que também em inglês e holandês).