O ano de António

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Quem diria, quem adivinharia que 2016 viria a ser, também, o (um, mais um) ano de António de Macedo?

Tal começou a ser possível com a publicação, logo em Janeiro, de «A Provocadora Realidade dos Mundos Imaginários», o seu mais recente livro de não-ficção – uma colectânea de artigos e de ensaios previamente publicados sobre espaços e objectos fictícios. Depois, durante o Verão foi anunciado que na edição de 2016 do festival internacional de cinema de terror de Lisboa MoteLx seria estreado um seu novo filme, intitulado «O Segredo das Pedras Vivas» – o que aconteceu a 10 de Setembro, no que constituiu igualmente uma ocasião para uma homenagem, uma ovação ao cidadão e artista exemplar por parte de muitos admiradores que então acorreram ao cinema São Jorge. Em seguida, e talvez mais significativo ainda, ficou a saber-se da existência de um outro filme, não do arquitecto-cineasta-escritor mas sobre ele – um documentário, intitulado «Nos Interstícios da Realidade, ou o Cinema de António de Macedo». Estreado a 29 de Outubro no DocLisboa, outro festival da capital dedicado à sétima arte, foi realizado por João Monteiro, que, curiosa e coincidentemente (ou talvez não), é um elemento da equipa que organiza o MoteLx…

… E que, em entrevista concedida ao Observador e publicada naquela mesma data, enunciou e explicou a origem, o contexto, os objectivos do seu trabalho… e o que descobriu enquanto o fazia: «O meu objectivo com este documentário era repor alguma justiça, deixar o testemunho de um autor que foi completamente esquecido. Foi assim que eu o conheci. Ouvi falar de um Macedo que tinha feito filmes fantásticos e que tinha assim uma aura de coisas que não eram levadas a sério, esotéricas. Isto coincidiu quando no MoteLx andávamos à procura das origens uma espécie do cinema de género em Portugal, e todos os caminhos iam dar ao Macedo. E veio-se a revelar que este estigma que ele tinha não fazia sentido, porque o Macedo havia deixado uma série de experiências que tinham a ver com o seu passado experimental, vanguardista, para serem, como ele diz no filme, cultivadas, melhoradas, e que acabaram por ser desprezadas pelos seus pares. (…) Os filmes fantásticos dele, seja “O Princípio da Sabedoria”, seja “Os Abismos da Meia-Noite”, seja “Os Emissário de Khalom”, não imitam os americanos. São filmes cuja base têm a ver com a cultura portuguesa: com poemas medievais, com lendas, com passados coloniais. (…) Dizer mal do Macedo tornou-se um hábito, era uma coisa que toda a gente fazia. E cada nova pessoa que chegava ao meio cultural tratava o Macedo como um mentecapto. Isso faz-me muita confusão, porque por exemplo, as entrevistas que lhe faziam não eram entrevistas, eram discussões. E até ao fim da carreira dele. Há uma entrevista, feita creio que pela Clara Ferreira Alves, quando da estreia de “Os Abismos da Meia-Noite”, onde lhe é perguntado: “Que coisa pirosa era aquela que você pôs ali?”. Não imaginamos ninguém a fazer essa pergunta ao Manoel de Oliveira ou a outro cineasta qualquer. E o número da “Cinéfilo” dedicado ao “A Promessa” é fantástico, a primeira parte é uma entrevista conduzida pelo Fernando Lopes e a segunda é uma discussão aberta entre ele e o António-Pedro Vasconcelos. (…) As pessoas que lhe recusaram constantemente subsídios se calhar nem conheciam a obra dele. Não sabiam que aquela pessoa tinha sido, entre outras coisas, um dos fundadores do Cinema Novo, o primeiro a competir em Cannes e em Veneza, na altura… (…) O António de Macedo vem de outro tipo de cultura, de outro tipo de DNA. Não é aquela cultura tipicamente portuguesinha da inveja, da calúnia, do boato. E a geração do Cinema Novo estudou toda fora de Portugal, e o António de Macedo era arquitecto na Câmara de Lisboa. Portanto, nos primeiros tempos, os colegas referiam-se a ele como “o arquitecto Macedo”. Como que a dizer, “calminha aí, que este tipo não estudou cinema e provavelmente não há-de durar muito tempo.” Isto quando ele dominava o meio tão bem como qualquer um deles. Só que de forma completamente diferente. Até escreveu um livro teórico sobre cinema. O contributo dele para o cinema é grande e muito variado. E por exemplo, quando da fundação do Centro Português de Cinema, na qual ele teve um papel preponderante, quando foi decidido que o primeiro filme ia ser do Manoel de Oliveira, para ele continuar a carreira, o António de Macedo não levantou ondas nenhumas, independentemente de não ser um fã do Oliveira. Mas assim que o Macedo filma “A Promessa”, cai-lhe tudo em cima! E ele aguentou uma carreira inteira a levar pancada de todo o lado, dos críticos, dos políticos, da Igreja por causa do “As Horas de Maria” e continuou sempre a prosseguir o objectivo de filmar. Custa muito viver num país que se dá ao luxo de desprezar, ou pior, de esquecer, certos autores.»

Sobre este documentário, e a (re)descoberta, mais do que merecida, e que já tardava, de António de Macedo e da sua obra, é de ler ainda «A vítima da “guerra” do cinema português» e «A conspiração contra António de Macedo», dois artigos de João Lameira no Público; e as recensões feitas por Artur Coelho e Cristina Alves, respectivamente nos blogs aCalopsia e Rascunhos.

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