Brancos Mortos (bib.), de Bruce Holland Rogers é, à semelhança de Como o Som do Vento nas Árvores, mais uma compilação de pequenas histórias do que propriamente um conto. Aqui são 11, as historietas, e têm pouco ou nada de fantástico. Trata-se de histórias quintessencialmente americanas, de tal forma que não foram poucas as vezes em que senti que havia ali alguma referência cultural que eu não estava a apanhar. Muito por isso, não gostei por aí além desta obra. Terminei a leitura com a sensação de que tinha sido escrita para um leitor americano e só para um leitor americano, não para mim. De que procurava precisamente o contrário da universalidade que tantas vezes se encontra na literatura. Ou em qualquer arte, diga-se de passagem. Mas não posso dizer que me tenha desagradado. Não é isso, até porque basta a habitual competência de Rogers na elaboração dos seus contos para a leitura já valer a pena. Mas ficou-me a faltar qualquer coisa. E é provável que, de todo o livro, seja este o texto de que menos gostei.
Autor Jorge Candeias
A série, embora isso não seja tão marcado no belo As Crónicas de Majipoor como é aqui, utiliza a velha máxima de que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia para se servir de uma estrutura, e de várias técnicas literárias, típicas dos romances de fantasia. O herói, bastante típico enquanto tal, é Valentine, um jovem que começa o romance amnésico e perdido num lugar remoto, embora na posse de uma bolsa recheada de ouro. Todo o romance consiste numa jornada do herói, pois Valentine depressa começa a descobrir que entre ele e o Lorde Valentine, o Coronal, há mais laços do que a mera coincidência do nome. Laços que vão a pouco e pouco revelando uma conspiração política inaudita nos anais do planeta, e que o levam a atravessar dois continentes, acompanhado por um grupo cada vez mais numeroso de seguidores (estes começam por ser uma trupe de malabaristas), para desencadear uma revolução.
Não tenho bem a certeza se se pode dizer que este livro é sobre o poder e os seus limites. Mas certamente que o poder, a sua variedade, os ressentimentos e ódios que pode gerar, têm nele papel importante e fazem uma grande contribuição para o avançar da história. Também não me parece que se lhe possa chamar um livro político, apesar da política estar nele bem presente. Uma política medieval, para a qual são mais importantes as alianças entre os vários membros da aristocracia do que propriamente a capacidade de ganhar o apoio das massas (de forma bastante típica da maior parte da fantasia, este é uma consequência daquelas). Tudo se centra no herói, na (re?)aprendizagem do herói, nas relações que o herói vai estabelecendo, nas fidelidades ou infidelidades que se vão revelando, nas aventuras a que vai sobrevivendo. Nada de muito aprofundado, apesar da extensão do romance. Este tem algo de juvenil, e a sua extensão deve-se mais ao fascinante mundo que Silverberg criou e nos mostra do que propriamente a peculiaridades da organização social e política dos seus habitantes ou a um grande desenvolvimento das personagens.
Para mim, é isso o que aqui é mais interessante: o próprio planeta Majipoor, as suas paisagens, as estranhas criaturas que o habitam, inteligentes, não inteligentes ou assim-assim. O sentido de maravilha que o mundo provoca. Ou me provoca, pelo menos.
Mas também acho que este livro, tal como Duna, embora de uma forma algo diferente, poderia ser uma ótima ponte para que um público que, apesar da recente onda de distopias juvenis, ainda está a meu ver demasiado preso à fantasia (ou até a um determinado tipo de fantasia), comece a descobrir a ficção científica e a tomar contacto com algumas das suas características. Isto, bem entendido, na condição de ser reeditado como deve ser. Sim, que esta é uma edição da Argonauta na sua fase de declínio total. Está muito longe de ser uma boa edição.
Por conseguinte, não gostei muito dela. Chateia-me quando abro um livro, leio dez páginas e ele começa a desfazer-se. Chateia-me quando leio sistematicamente "viajem" em vez de "viagem". Chateiam-me várias outras coisas do género. E, pessoalmente, não sou grande fã de heróis e das suas jornadas. Mas há quem seja, e julgo que, para esses, este é um livro realmente bom. Ou pelo menos poderia sê-lo, se bem editado.
Este(s) livro(s) foi(ram) comprado(s).
The Merchant and the Alchemist's Gate é uma bela noveleta de Ted Chiang que, usando a técnica das narrativas dentro de narrativas e a ambientação das Mil e Uma Noites, conta uma convoluta história sobre viagens no tempo, através de portais, e reflete sobre os conceitos de destino e de livre arbítrio. O tempo que Chiang descreve é um tempo linear, inalterável e não sujeito a paradoxos. Não que qualquer tempo linear e inalterável esteja imune a paradoxos. Mas no universo que Chiang descreve sim. As viagens, que tanto podem realizar-se para o passado como para o futuro, acontecem numa linha temporal única, e a parte mais interessante da história é o modo como Chiang consegue conjugar isso, que em princípio geraria paradoxos do tipo "se eu souber que vou morrer no sítio tal a tais horas bastar-me-á não estar lá a essa hora para alterar o futuro que teoricamente será inalterável", com a conservação da capacidade de decisão individual e do inesperado, através de um conjunto de pequenas — ou não tão pequenas como isso — histórias entrelaçadas, cada uma centrada na sua personagem. O resultado é um perfeito nó — ou um nó perfeito, o que não é bem a mesma coisa — na cabeça e nos conceitos do leitor. Uma ficção científica de baixa tecnologia, muito filosófica, e bastante bem escrita. Muito bom.
A Ama (bib.) é mais um conto de Steven Bauer que adapta histórias alheias, escritas para televisão. Os autores desta são Joshua Brand e John Falsey, e o conto, se nos pudéssemos abstrair da tradução, até seria razoável. Nada que nunca se tenha visto, mas razoável. Os protagonistas (ou, melhor dizendo, os antagonistas) da história são dois miúdos de Los Angeles, absolutamente insuportáveis, que têm o condão de correr rapidamente com toda e qualquer ama que a mãe tente contratar. São assim uma espécie de Calvin ou de Bart Simpson elevado à sétima potência. Até que lhes aparece uma que os domina. Como? Quem viu o filme Nanny McPhee já deve ter percebido. Sim, é mágica. E responde às traquinices com traquinices, tão perigosas que acaba por assustá-los e reduzi-los à complacência. Com outra tradução, não seria mau.
Contos anteriores deste livro:
O romance é dividido em oito partes, intituladas "Nossa Senhora" disto ou daquilo, e cada parte divide-se em três tempos, com as suas personagens e ambiente próprios. Um presente (em relação ao ano em que McDonald escreveu o livro, entenda-se; já passaram alguns), centrado numa moderninha carioca, produtora de reality shows, tão fútil e arrivista como se poderá supor de tal atividade. Um futuro, ambientado numa São Paulo ciberpunk de daqui a 20 anos e centrado num malandro de rua repleto de "jeitinho brasileiro", bissexual e trapaceiro, que muda de identidade como quem muda de cuecas. E um terceiro ambientado na época do Brasil colonial do início do século XVIII e centrado num jesuíta irlandês com um gostinho especial pela violência, que recebe a incumbência de mergulhar profundamente na Amazónia para averiguar o que se passa com um padre que terá enlouquecido, criando aí uma espécie de reino, implacavelmente rigoroso, consigo no trono.
E tudo isto regado a física quântica.
O livro tem interesse. Dele ressalta, principalmente, a magnífica qualidade descritiva da prosa de McDonald, capaz de criar ambientes complexos com pinceladas precisas, que com frequência chegam até a ser poéticas. O encadeamento das três histórias, a forma como elas se vão a pouco e pouco fundindo até à apoteose final, também está muito bem feito. Parte das ideias de que se socorre tem, igualmente, grande qualidade e o autor usa-as quase sempre com mestria, introduzindo-as na trama sem grandes infodumps nem oscilações de ritmo. McDonald é um bom escritor, provavelmente um dos melhores estilistas que estão atualmente em atividade na ficção científica anglófona, e isso fica aqui claro, mesmo na nem sempre bem sucedida tradução portuguesa.
Mas o livro não é perfeito. E julgo que devo advertir quem for alérgico a revelações sobre o enredo para pararem de ler aqui, ou para saltarem para o penúltimo parágrafo, pois vou ter de fazer algumas.
Quando as três histórias começam a fundir-se, o leitor depressa compreende que algo de invulgar ali se passa. E começa a compreender o quê quando, pouco depois, repara no repetido surgimento de umas peculiares facas quânticas, que cortam tudo e mais alguma coisa, deixando atrás de si uma luminescência azulada.
Até aqui, tudo bem.
A porca torce o proverbial rabo quando descobrimos que estamos num cenário de universos paralelos, ainda que com a nuance de não serem propriamente universos mas simulações num gigantesco computador quântico, algures no longínquo fim frio do Universo (fazendo lembrar um pouco o cenário descrito em Darwinia), no meio de uma guerra entre duas fações: a daqueles que pretendem manter as simulações isoladas da realidade até ao fim, e a dos que tentam revelar a verdade aos "sims". O problema é que os porquês não ficam minimamente claros. Não sei se por deficiência (ou escolha) do autor, se por insuficiências da tradução, não se percebe que ideias estão por trás das partes em conflito e portanto do conflito. Por que motivos uns acham necessário divulgar a informação e outros mantê-la secreta. Pior: como nos é dito que as simulações funcionam segundo a lógica das ramificações infinitas nos universos paralelos, aquela lógica segundo a qual um ato diferente dá origem a um novo universo, que vai seguir um novo caminho com esse ponto de divergência relativamente ao "original", a lógica afirma que qualquer tentativa de interferência de uns universos noutros só irá conseguir criar universos novos, não alterar os antigos. Portanto é fútil. Logo a própria guerra é fútil. Logo não faz sentido.
E isto, para mim, estraga a história.
E eu, que estava a gostar bastante até ao último quarto do livro, mesmo apesar de um certo excesso de exotismo, de um Brasil muito colado a uma visão excessivamente folclórica — excessivamente gringa — do país que não corresponde por inteiro à realidade, acabei por achar penosa a leitura do resto. Porque, pura e simplesmente, deixei de acreditar naquilo. A suspensão da descrença desfez-se. E é pena. McDonald é capaz de melhor.
Este livro foi comprado.
Guichê é mais um poema de Alexandre O'Neill, embora, contrariamente aos anteriores, seja razoavelmente longo. Trata-se de um texto em que O'Neill destila a sua raiva contra os burocratas, não necessariamente funcionários públicos, mas decerto funcionários de alguma coisa, e a tendência que mostram de deixar o utente à espera ad aeternum enquanto põem a conversa em dia. Quando o burocrata trabalha, começa ele, é pior do que quando destrabalha. Entre a ironia e o sarcasmo, o poema é tão acutilante como este início sugere, e tem um fim absolutamente hilariante. Deste sim, gostei bastante.
Textos anteriores deste livro:
Pois é outro poema de Alexandre O'Neill, um pouco mais comprido e substancialmente mais brejeiro, sobre a frustrante situação do "respeitoso membro de azevedo e silva" (assim mesmo, sem ter cá coisas maiúsculas) que queria, mas não conseguiu, "perpenetrar nas intenções de elisa". Mais uma historieta da vida banal que, sim, consegue provocar mais que um leve sorrisinho a quem tenha do humor a mesma conceção que eu. Deste gostei.
Textos anteriores deste livro:
Chaval é outro pequeno poema de Alexandre O'Neill sobre a banalidade quotidiana. Este é sobre um adolescente, ainda borbulhento e inocente. Gostei mais que do anterior, quanto mais não seja por causa do uso de terminologia pouco habitual, como "chaval". É sempre com gosto que vejo alguém a torpedear a mediocridade bem-pensante e melhor falante das "belas letras". Sou assim, um eterno chaval.
Textos anteriores deste livro:
Escalfeta é um daqueles pequenos poemas de Alexandre O'Neil sobre a pequenez da vida. É irónico, claro. Mas não gostei muito. Pareceu-me mais pretexto para encher uns quantos versos com rimas em -eta do que propriamente coisa com que o O'Neill quisesse mesmo dizer alguma coisa. Não é mau, mas não gostei muito.
Textos anteriores deste livro:
Os caturras da velha ortografia têm assim uns entusiasmos súbitos com as coisas mais estapafúrdias. Cansados de derrotas, sempre que lhes aparece à frente um artigo de alguém a deitar abaixo a nova ortografia enchem o papo de ar e pavoneiam-se por aí, inchados de orgulho, quais pombos em pleno cio. Um dos casos mais recentes foi o de uma tal Maria Regina Rocha, que dedicou algumas horas do seu tempo livre, decerto, a fazer uma espécie de estudo em que pega no vocabulário da mudança disponível no Portal da Língua Portuguesa e conta o número de casos em que a nova ortografia "unifica" e "desunifica" a ortografia. Pretende com isso provar que o AO é absurdo porque não unifica coisa nenhuma, e blá blá blá e renhónhó.
O problema, claro, é que o que ela faz e diz padece de vários problemas. Problemas tão sérios que, se fossem doenças, dariam direito a internamento.
Em primeiro lugar, a senhora conta os casos em que a ortografia é unificada ou não o é, mas exclui à partida categorias inteiras de palavras, nas quais só muda a ortografia brasileira, e que, certamente por pura coincidência (caso contrário teríamos de concluir má-fé ou desonestidade intelectual, o que seria chato) ficam todas, sem exceção, iguais às portuguesas. Diz que é por serem "residuais". Acontece que o AO altera cerca de 0,5% do léxico brasileiro (contra 1,5% do português), e quase todas as alterações têm a ver, precisamente, com essas categorias de palavras. Pelo menos 0,4% do léxico.
É um resíduo e peras, hã?
Em segundo lugar, afirma coisas extraordinárias como esta: "Em Portugal, altera-se a ortografia fazendo desaparecer as referidas consoantes e, afinal, no Brasil, essa ortografia de cariz etimológico mantém-se!" Nem lhe passa pela cabeça (ou se passa voltamos à tal má-fé e desonestidade intelectual, o que volta a ser chato) que a tal "ortografia de cariz etimológico" só se mantém no Brasil quando não se limita a ser uma questão etimológica mas se trata de uma questão de pronúncia. Lá, como cá, as consoantes mantêm-se quando são pronunciadas. Não por a etimologia das palavras ser esta ou aquela, mas por a sua pronúncia ser esta ou aquela. Falar-se aqui de manutenção da etimologia é, como soi dizer-se, atirar areia para os olhos dos papalvos.
Ou distração, vá. Se calhar foi só distração.
Mas o mais importante nem é isto. É a confusão em que os caturras tantas vezes mergulham quanto ao significado da expressão "unificação ortográfica". Confundem unificação com uniformização e dizem disparates sobre o acordo não fazer o que diz que faz porque não uniformizou a ortografia da língua.
Acontece que nunca foi esse o objetivo.
Querem que eu repita?
Nunca. Foi. Esse. O. Objetivo.
O objetivo, conforme expresso em documentação oficial (um anexo ao texto legislativo que contém o acordo aquando da sua publicação em Diário da República, mais precisamente), sempre foi, desde o início, e cito, "consagrar uma versão de unificação ortográfica que fixe e delimite as diferenças actualmente existentes e previna contra a desagregação ortográfica da língua portuguesa." Quem saiba ler português, em qualquer das ortografias em que a língua se possa expressar (e esta é a antiga portuguesa, boa para caturras), facilmente compreenderá que o que aqui está em causa não é uma uniformização ortográfica, mas uma unificação no sentido em que passa com o AO a haver um documento único, válido para todos os países lusófonos, a definir a ortografia do português.
Um documento único, portanto unificado, a substituir os dois até aí existentes e a possibilidade muito real de passarem a haver mais a curto ou médio prazo.
Isto, é bom dizê-lo, podia ter sido feito deixando tudo como estava. Podia ter-se simplesmente criado um documento único que elencasse todas as variantes tal como existiam nas ortografias pré-AO, e o resultado em termos de unificação ortográfica seria o mesmo. Passaria na mesma a haver um único documento a definir a ortografia da língua portuguesa, e esta, portanto, ficaria unificada. Não uniformizada, mas unificada.
Mas os caturras não percebem isto. A mim parece coisa simples de entender, mas eles não entendem.
Mistérios do raciocínio caturreiro.