No próximo dia 1 de Junho abre ao público na Biblioteca Nacional de Portugal, e fecha a 18 de Agosto, a mostra «Continuo a ser aquilo que ninguém espera – Mário Henrique Leiria 1923-1980», iniciativa que celebra o centenário do nascimento – que se assinalou, mais precisamente, a 2 de Janeiro passado – do renomado artista, escritor (poeta, prosador, crítico, tradutor e editor) e pintor, uma das grandes figuras do movimento surrealista em Portugal.
Como se pode ler na página do sítio da BNP dedicada à mostra, esta procura destacar «a diversidade da sua produção e partindo das suas próprias palavras e traço», e está organizada em três núcleos. O primeiro, «”Pintar, desenhar, agatanhar ideias e procurar coisas” introduz este universo pela mão do próprio, através do traço de “Auto-retrato” e da palavra registada na nota biográfica em carta a Hélia de Medeiros e Joachin Peters. A partir daí vão surgindo composições ficcionais de genealogia diversa, em simultâneo com a teorização do pensamento estético patente no “1º Manifesto do Sobreporismo”. Assim se abre caminho à aproximação das “Actividades da movimentação surrealista em Portugal”». O segundo núcleo, «”A chateação continua” – porque “objectos, colagens, escrita automática, desenhos em estado de libertação, poemas, não-poemas, etc. são mais reais, muito mais absolutamente reais do que qualquer forma exclusivamente plástica” (carta a Mário Cesariny e aos outros) – mostra a coabitação entre linguagem plástica e verbal na obra de Leiria». O terceiro núcleo, «”Pois claro que ainda não morri” dá conta do período em que Leiria esteve casado (1958-61) e permaneceu no Brasil. Regressado em 1970, só em 1973 vê os “Contos do Gin-Tonic” publicados. (…) Seguem-se “Novos Contos do Gin”, republicado em 1978 com o acrescento das “Fábulas do próximo futuro”, registando nesta edição a advertência ao leitor: “espera o autor, convicto, que as Fábulas fiquem apenas por fábulas. No entanto, está a pau. Não desiste. Sempre a pau”.»
Na verdade, os dois livros escritos e/ou publicados sob a influência (?) da notória bebida alcoólica constituem sem dúvida as obras mais duradouras, famosas e influentes de Mário Henrique Leiria, pontos altos não apenas do surrealismo mas também da ficção especulativa em Portugal. Obviamente, e quando finalmente os li, no primeiro quadrimestre de 2016, não podia deixar de lhes dar o destaque literário naquele período. Quase quatro anos depois, a 27 de Janeiro de 2020, publiquei aqui no Simetria um texto meu sobre um livro na posse da minha família há cerca de 60 anos e que, finalmente, fora (por mim) aberto e lido – uma antologia de contos de ficção científica de autores soviéticos, co-traduzidos por MHL, que também desenhou a capa, em mais um exemplo, mais uma demonstração, da tal «coabitação entre linguagem plástica e verbal» na sua obra.
A mostra que estará patente ao público a partir da próxima quinta-feira na Biblioteca Nacional de Portugal não é, porém, a primeira evocação de Mário Henrique Leiria a propósito dos 100 anos do seu nascimento. O jornalista e animador cultural João Morales já fez duas em 2023, embora juntamente com as de outros vultos maiores da cultura portuguesa. A primeira foi aquando do mais recente festival Livros a Oeste, decorrido entre 9 e 13 de Maio últimos, cuja programação é feita por Morales, que teve como mote o verso «Entre nós e as palavras» de Mário Cesariny, cujo centenário de nascimento foi celebrado na Lourinhã juntamente com os de Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues e, claro, o de Leiria. A segunda evocação aconteceu há exactamente um mês, a 26 de Maio, num espectáculo realizado na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, em Lisboa, intitulado «Três vontades de viver – No centenário de Mário Henrique Leiria, Natália Correia e Mário Cesariny», em que João Morales leu textos daqueles três autores com acompanhamento musical de Hernâni Faustino (contrabaixo) e Maria do Mar (violino). Entretanto, e já depois de publicado este texto na sua versão inicial, Morales informou-nos de que no Centro de Arte Manuel de Brito (situado no Campo Grande, muito perto da BNP) decorreu, entre 14 de Janeiro e 27 de Maio, uma exposição a propósito do centenário, onde estiveram expostas «peças únicas de Mário-Henrique Leiria salvas após a sua morte pelo coleccionador e galerista Manuel de Brito, desenhos originais, cartas, bem como os cartazes originais da primeira exposição dos surrealistas portugueses, ou até mesmo desenhos da infância, anteriores aos dez anos de idade, bem como fotografias feitas por ele e outros trabalhos».
O ano de 1923 foi de facto notável pelo número de grandes nomes das artes nacionais que nele vieram ao Mundo. Além dos já mencionados há ainda a acrescentar os de António Manuel Couto Viana, António Quadros, Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade e Luís Amaro.