Junto ao rio real, uma batalha imaginária

Foi em 2014 que dei a conhecer pela primeira vez Mariano Martin Rodriguéz, espanhol que estuda e divulga a literatura de ficção científica e de fantasia, e que, nesse âmbito, reserva(va) um particular interesse pelas obras de autores portugueses, tanto «antigos» como «modernos». A atenção do filólogo para com textos elaborados a oeste da sua fronteira continuou, e em 2020, para (o Nº 28 d)a revista Hélice, seleccionou, traduziu e introduziu trabalhos de três vultos oitocentistas nacionais: «Visão da confraternidade», de Teófilo Braga, «Deus», «A voluptuosidade e o amor» e «Primavera abortada», de Raul Brandão
… E «A Batalha do Caia», 
de José Maria Eça de Queiroz. A propósito do qual escreveu: «O primeiro género moderno de ficção de antecipação com um êxito maciço foi o que consiste na narração de guerras hipotéticas ocorridas num futuro próximo, guerras essas em que se utilizariam as armas mais modernas e os diferentes Estados-nações e impérios conteporâneos se enfrentariam para impor a sua vontade e redesenhar as suas fronteiras. (…) O título “A Batalha do Caia” anuncia o género de ficção de que se trata, tal como confirma em seguida um parágrafo introdutório escrito como o arranque das memórias de uma velha testemunha dos feitos, em desconformidade com a historiografia oficial. (…) Depois desta primeira sequência memorialística, o restante apresenta-se na terceira pessoa, primeiro com uma segunda sequência que resume esquematicamente os antecedentes geopolíticos que facilitaram a invasão de Portugal, seguida de uma terceira em que a invasão é narrada sintéctica mas detalhadamente. Depois da batalha decorrida nas margens do Caia, o rio fronteiriço entre Espanha e Portugal perto de Badajoz e de Elvas, a falta de aliados externos e a própria debilidade interna, causada pela corrupção política e pela educação deficiente do povo, obrigam os governantes portugueses, tanto a monarquia reinante como a junta republicana que lhe sucede, a recorrer a meios desesperados para defender Portugal, mas sem êxito devido à escassa preparação militar e económica da nação. Não nos encontramos, pois, ante uma ficção bélica nacionalista agressiva que glorifique as vitórias próprias com tácito desprezo das alheias. Ao contrário, para Eça de Queiroz são as carências da sua pátria as verdadeiras responsáveis da catástrofe. (…) Estando fundamentado ou não este temor, Eça de Queiroz parece fazer um certo eco n’” A Batalha do Caia” de um receio ante o país vizinho maior, que estimulou grandemente o nacionalismo português como reacção ao unionismo iberista. Além do mais, a imaginada invasão espanhola nem sequer dá lugar a essa união mas sim a uma mera diminuição do território português, mais de acordo com os usos imperialistas contemporâneos do que com os ideais de uma progressiva unificação dos territórios culturalmente afins como etapa para uma sonhada federação da Europa. A literatura de guerras futuras é um produto típico da era imperialista deste continente, e o texto de Queiroz reflecte perfeitamente aquela conjuntura, com a vantagem de que a sua brevidade intensifica o vigor da narração e da sua mensagem. (…)»
Com esta sua análise Mariano Martin Rodriguéz contribui também para realçar e reforçar a importância de Eça de Queiroz para a literatura fantástica em Português, que eu já antes destacara. Uma constatação que, porém, tarda em ser reconhecida por outros investigadores. (Na imagem, a primeira página do manuscrito d’«A Batalha do Caia», guardado na Biblioteca Nacional de Portugal.) (Também no Queiroz150.)

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