Em From Paralysis to Fatigue, Edward Shorter enuncia a existência de “reservatórios de sintomas”: aglomerados ideais, preenchidos pelas tendências predominantes dos períodos que permeiam. São, em simultâneo, influenciáveis e influentes. Faz sentido falar em “sintoma”, porque a palavra também significa “presságio”; logo, as mutações que afectarão a sociedade poderão ser calculadas pelo estudo do “reservatório de sintomas”. Nas primeiras décadas do século XIX, os Estados Unidos foram desinquietados pelo Segundo Grande Despertar: revivalismo religioso, de natureza arminiana, que quis repor o rigor protestante, perdido em favor do agnosticismo estimado pelos Pais Fundadores. Foi um período em que a ciência manteve a orientação de que deveria glorificar o desígnio de Deus. Entre os astrónomos americanos e europeus, a maioria era composta por teólogos crentes num pluralismo cósmico teísta (como William Herschel, descobridor de Úrano e da radiação infra-vermelha), sob o qual o universo era populado por raças tementes a Deus. Reverendos astrónomos, como Thomas Dick, acreditavam que a Lua era habitada por uma civilização isenta de pecado (Dick até calculou que ela perfazia o número de 4,2 mil milhões de indivíduos) e Von Littrow e Friedrich Gauss arrogaram ser possível comunicar com os selenitas. A crença no povoamento da Lua foi aceite por todos como provável: fez parte do “reservatório de sintomas” desse tempo. Em Agosto de 1835, o jornal nova-iorquino The Sun publicou uma série de artigos sobre a descoberta do astrónomo John Herschel (filho de William Herschel), isolado na África do Sul. Lendo o seriado, intitulado Great Astronomical Discoveries Lately Made by Sir John Herschel, L.L.D. F.R.S. &c. at the Cape of Good Hope, o público ficou a saber que a Lua tinha florestas, lagos e era habitada, entre outras espécies (como castores bípedes), por inteligentes híbridos de humano com morcego, capazes de construir igrejas. Graças a um novíssimo procedimento óptico (descrito ao detalhe), que permitia a magnificação das imagens telescopiadas sem que perdessem definição, Herschel desvendava que o homem não estava sozinho no sistema solar. The Sun, criado em 1833 por Benjamin Day, já revolucionara cabalmente o modo de fazer jornalismo, ao lançar-se no mercado em pequeno formato e com custo de um penny: foi o primeiro diário popular, com características actuais, e as novidades sobre os selenitas transformaram-no no título mais vendido. À edição episódica advieram as panfletárias, com litografias dos homens-morcegos voando entre vulcões, lagos e cascatas lunares. Os restantes periódicos norte-americanos (e europeus) não perderam tempo em republicar o material na integralidade, mas James Gordon Bennett, proprietário e editor do diário nova-iorquino Herald, concorrente do The Sun, não acreditou na descoberta e iniciou uma campanha para que Richard Adams Locke (editor do The Sun) assumisse a autoria das espantosas “noticias”. Com efeito, fora Locke a escrevê-las; e em 1840, numa crónica publicada no semanário New World, assumiu que quisera satirizar a crendice com que a ciência, em particular a astronomia, era praticada nas academias, mas, infelizmente, ninguém compreendera o ponto de vista. O seu único trabalho ficou conhecido como Grande Embuste da Lua.
Foi o “reservatório de sintomas” da época, recheado com a crença na Lua habitada e a exuberância da emergente imprensa popular, que serviu de placenta ao desenvolvimento de um inédito género literário que iria aperfeiçoar-se no início do século seguinte. No dia 3 de Setembro de 1835, Bennett escreveu no Herald um artigo intitulado A New Species of Literature: nessas linhas, cunhou o estilo de Locke como sendo «scientific novel». O seriado foi pioneiro na descrição meticulosa de uma tecnologia óptica especulativa que credibiliza a história do ponto de vista científico: o texto suspende-nos a descrença porque ciência e ficção se entrosam com harmonia – e esse cruzamento aparece pela primeira vez pela mão de Locke, assim como a designação «scientific novel», inventada pelo editor rival Bennett, antecipa em quarenta e um anos a de «scientific fiction», criada por William H. L. Barnes na introdução que escreveu para a colectânea de homenagem póstuma a Caxton (W. H. Rhodes), e em noventa e um anos o uso dado por Hugo Gernsback no primeiro número de Amazing Stories. Conclui-se que Locke, com o estilo inédito, e Bennett, com a designação que lhe deu, foram os pais remotos da ficção científica.
Locke atreveu-se a imaginar sobre a Lua e num precursor jornal popular mostrou-nos como imaginar o século XX. Sem Locke talvez não houvesse Verne e Wells e sem os seriados e folhetins do The Sun talvez não houvesse fanzines, nem weblogs. A Lua deu-lhe ainda oportunidade de usá-la como alegoria de uma sociedade sem escravos, num momento em que Nova Iorque era a cidade mais sulista dos estados do Norte. A especulação fantástica podia, afinal de contas, falar de problemas reais. O período supracitado, cheio de convulsões, prova que só o fantástico pode salvar a cultura de tornar-se o epifenómeno subserviente de um mercado cada vez mais volúvel e falsamente personalizado. É olhando para a Lua, domínio argênteo da Imaginação, que se pode observar sem cegueira a luz do Sol, radiância dourada da Obra. Fantasiando, planeia-se o futuro.
(Crónica publicada originalmente no nº 11 da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência, e a 28 de Dezembro de 2011 no blogue Cadernos de Daath.)