“Harry”, chamou ela, “parece-me que ainda continua”, mas o vento, apesar de fraco, levou as palavras para onde o seu marido não poderia ouvi-las. Suspirou e tentou ignorar a fadiga que o seu corpo sentia daquele curto passeio no jardim. Se mesmo esta distância tão curta já era demasiado para ela… Quereria aquilo dizer que o seu estado estava a piorar? E poderia isso significar que uma mudança se estava a manifestar…?
Sacudiu a cabeça como se tentasse afastar as emoções conflituosas que perturbavam a sua paz de espírito. Ira, impotência, incerteza. E, tinha de admiti-lo, a incapacidade de compreender. A rigorosa e total impossibilidade de entender que raio era aquilo que lhes estava a acontecer. Tinha de falar com o Harry sobre o assunto, independentemente da vontade que ele tivesse no momento.
Lentamente, caminhou ao longo do caminho de cascalho até ao pátio onde o Harry se sentava sempre. Ele tinha adormecido outra vez, de certeza. Os momentos em que estava acordado pareciam tornar-se cada vez mais raros. Se aquilo continuasse, em breve estaria verdadeiramente sozinha, acompanhada por um eterno dorminhoco. Infelizmente, não conhecia nenhuma maneira de parar aquele processo. Com uma intensidade perturbante, as questões caíram sobre si: que significava esta evolução, que significava o próprio facto da haver uma evolução? Era uma confusão. Tinha de falar com o Harry sobre o assunto, imediatamente, mesmo que isso significasse tirá-lo do seu repouso. Por outro lado, ela não tivera a ousadia de perturbar o seu sono nos últimos tempos. Parecia tão imprudente. Quem sabia quais seriam as consequências de tal acto desesperado?
“Harry? Estás acordado?” A voz, já frágil da idade, tremia de preocupação. Talvez não devesse acordá-lo. Só o fizera algumas vezes, e fora há tanto tempo que já nem se lembrava do último caso. Acabara por estragar a disposição dele, o apetite, o próprio dia.
Com alívio, notou que se tinha afligido em vão: Harry tinha acabado de sair da sua “pequena sesta da tarde” como preferia chamar-lhe de uma forma casual, e agora olhava-a com os seus olhos focados a custo.
“Sim, claro que estou acordado”, disse ele, e estendeu o braço para a chávena de chá a seu lado na mesa. Levou a chávena aos lábios, tomou um pequeno gole, e voltou a pousar a chávena, gentilmente.
“Ainda está quente”, disse ele, aprovadoramente. “Vês? Não posso ter dormitado por muito tempo. Senão como podia estar o meu chá ainda quente?” Olhou-a triunfantemente nos olhos, com um sorriso tímido a enrugar-lhe os lábios.
“É evidente que tens razão”, disse ela depois de um momento de hesitação, não sem dificuldade. Será que ele nunca compreenderia? Será que ele nunca chegaria a reparar? Será que ele nunca escutaria o que lhe tentara explicar em tantas ocasiões? Talvez fosse mais prudente desistir de uma vez por todas, mas desta vez ele retirou a iniciativa das suas mãos ao perguntar, “Querias dizer-me alguma coisa, querida?”
Ela suspirou. “Sim”, disse, numa voz tão firme quanto possível, “há uma coisa para que gostaria de chamar a tua atenção. Tenho observado as flores, Harry, e notei algo de estranho, perturbador”.
Harry fechou os olhos, e por um momento ela temeu que ele tivesse voltado a adormecer. Mas depois ouviu-o murmurar, “Oh não, outra vez não. Temos de falar de tudo isso outra vez?”
“Harry, por favor. Eu tenho esta sensação de que isso é tremendamente importante.”
“Bom, então está bem, querida. Sou todo ouvidos. Diz-me lá o que descobriste.” Ela conseguia ler a expressão na sua cara. Enfado, porque estava convencido de que aquelas discussões não levavam a parte alguma, aceitação polida da sua insistência em informá-lo das suas descobertas, resignação perante a inevitabilidade de tudo aquilo.
“Tudo no jardim parou de crescer desde há um tempo que vai sendo considerável. A relva, as flores, as árvores. Tudo permanece tal como está. É como se o tempo se tivesse imobilizado. Eu já tinha notado como tudo parecia ter abrandado, mas agora parece ter parado de todo. Não percebo, Harry.”
“Mas, querida, não há motivo para preocupações. Quantas vezes tenho de dizer-te que tudo está na tua mente? Está tudo bem, perfeitamente normal. Porque não te acalmas e te sentas e bebes uma chávena de chá?”
Ele encheu as duas chávenas com chá e pousou o bule com um profundo suspiro de satisfação. Fechou os olhos e sussurrou, “Oh, querida, se ao menos soubesses como eu aprecio estes momentos de paz que temos aqui.” Não voltou a abrir os olhos, e passado algum tempo a respiração lenta e regular informou-a de que tinha readormecido. Ela não tocou no chá e entrou na casa, pondo-se a vaguear sem destino através dos quartos, todos embebidos em silêncio.
A casa inteira estava fria, como se ninguém tivesse vivido nela durante muito tempo. No entanto, não havia sinais de negligência ou desleixo na lida da casa, nem mesmo uma fina camada de pó cobria as superfícies expostas. A casa estava privada de calor humano simplesmente porque estivera de facto vazia durante muito tempo. Só ali existiam eles os dois, e Harry tinha estado na sua cadeira no pátio desde um tempo que se perdia na memória, enquanto que ela tinha andado pelo jardim, observando e desfrutando a sua atmosfera, aquecendo o espírito no seu esplendor de tirar a respiração.
Cuidadosamente, subiu o lanço de escadas que levava ao quarto. Estremeceu com o leve ranger das escadas. Mesmo um som fraco como aquele parecia fragmentar o profundo silêncio. O quarto parecia estar ainda mais sossegado e desprovido de vida que o resto da casa. Sentiu um misto de vergonha e embaraço por perturbar a serenidade enquanto atravessou o quarto em direcção da janela, puxou as cortinas gentilmente e fixou os olhos no jardim por baixo de si. Os olhos perderam o foco gradualmente e ela mal reparou naquilo para que olhava enquanto as recordações de como tudo tinha evoluído lhe acorriam à mente.
Fora um processo muito lento, tão lento que ela a princípio nada notara. Começara quando Harry se reformara e todas as rotinas e pressões quotidianas puderam ser deitadas fora. Já não se exigia que se levantassem cedo. Os horários regulares haviam-se tornado desnecessários. Finalmente tinham o tempo e a liberdade para se sentar e desfrutar os dias um a um. Perderam o contacto com o mundo lá fora a pouco e pouco e, francamente, nenhum deles se preocupou de verdade. A sociedade havia mudado tão depressa, a um ritmo que eles tinham sempre achado difícil de acompanhar. No momento em que deixara de ser necessário acompanhar esse ritmo, eles ficaram felizes de deixar que as paixões se lhes escapassem entre os dedos. Em breve tornara-se impossível recuperar o contacto com a sociedade como um todo.
À medida que envelheciam, o abismo entre eles e o resto do mundo alargava-se. Talvez tivesse sido diferente se tivessem tido filhos. Mas infelizmente não era o caso e agora, claro, era demasiado tarde para rectificar essa situação.. Portanto as suas vidas pareciam abrandar. Havia cada vez menos assuntos que emprestassem um sentimento de actividade aos seus dias. Os trabalhos caseiros eram executados uma vez por semana por uma mulher da limpeza; nos últimos tempos era também ela quem fazia todas as compras.
Harry passava cada vez mais tempo no pátio, lendo e bebendo chá. Com o passar do tempo, a quantidade de chá foi crescendo e o seu material de leitura minguava. Ela passava mais e mais tempo no jardim. O tempo continuava a passar, mas passava cada vez mais devagar, até que como ela descobrira, estava agora virtualmente parado.
Não se conseguia lembrar da última vez em que a mulher da limpeza viera… se bem que não se notasse pelo estado da casa. O Harry parecia estar congelado na sua altura favorita do dia. Dormitava na sua cadeira no pátio, bebendo um gole de chá de vez em quando. A hora do chá estendia-se agora até ao infinito. E no jardim já nada mudava ou crescia. De todas as vezes que conversavam sobre aquilo, ele respondia que era só na imaginação dela que as coisas não estavam bem. Tudo estava na mente dela, dizia. E como prova irrefutável dependia do chá, que não arrefecia, e portanto a eternidade que ela vivera não passava obviamente de alguns momentos. Não valia a pena apontar as falhas naquela lógica. Quando acabava de explicar que o chá quente fazia parte daquilo que os rodeava, que estava agora congelado no tempo, ele tinha geralmente voltado a adormecer. Mas por outro lado, não podia pôr de parte a possibilidade de ele estar certo. Se, como ele dizia, estivesse tudo na sua mente, como poderia ela determinar a verdadeira natureza das coisas?
Claro que havia sempre o jardim. Era claro que não imaginara o que observara lá. Mas haveria alguma maneira de o convencer das suas descobertas? Haveria alguma prova inegável para a sua teoria? Se ao menos pudesse convencê-lo a ir consigo até ao jardim, ver por si mesmo como…
Abanou a cabeça, como se acordasse de um sonho enlouquecedoramente estranho. Voltou a focar os olhos e viu aquilo para que tinha estado a olhar sem ver.
O jardim! Estivera aqui parada a olhar para ele durante minutos e só agora compreendera que talvez fosse melhor descer e dar um passeio no jardim, só para verificar de que tudo estava bem. Talvez o relvado precisasse de ser aparado, algumas folhas mortas de ser removidas, a orla de ser cortada ou qualquer outra tarefa desempenhada.
Com todas as recordações varridas da sua mente ao mesmo tempo, ela atravessou o quarto, desceu as escadas e caminhou direita ao jardim, inalando o revigorante ar do fim da tarde. À primeira vista tudo parecia estar perfeitamente normal, mas depois reparou com crescente preocupação que não houvera a mínima mudança desde a sua última visita. Flores que estiveram prestes a rebentar, continuavam nesse estado da metamorfose. Uma folha partida, moribunda, prestes a cair para o chão mantinha-se precisamente na mesma posição. E estes casos não eram excepções. Uma inspecção mais cuidadosa disse-lhe que este era o estado geral das coisas. O jardim já não estava sujeito à mudança, ao passar do tempo. Isso só poderia querer dizer…
Tinha de falar com o Harry sobre aquilo.
Título original: The Garden Where Time Crumbled to Dust
Tradutor: Jorge Candeias