— Entra.
A porta fechou-se com um estalido plástico. Ele atravessou-a e entrou. A porta abriu, resmungando.
— Senta-te.
A cadeira flutuou na sua direcção. Ele sentou-se.
— Fala.
— Tenho um problema…
— Que problema?
Ele hesitou um momento, as mãos contorcendo-se nos braços translúcidos da cadeira.
— Ontem o painel de navegação abraçou-me!…
Ela flutuou, quase absurdamente. Os seus olhos estenderam-se em torno das suas órbitas elásticas e tocaram o cérebro dele. O painel tinha-o abraçado.
— E então?
— O quê?
As lâmpadas desceram daquilo que deveria ser o tecto e olharam perplexas para o espaço lá fora. Uma parede partiu para parte incerta.
— E então? Onde é que está o problema?
Ele remexeu-se na cadeira. Ela gostou. A cadeira.
— Bom… não foi agradável… é isso…
— Deverei dizer ao painel para não te voltar a abraçar?
A parede voltou, acompanhada das estrelas. As lâmpadas recuaram, envergonhadas, e apagaram-se numa breve fúria fugidia. Ele girou sobre si próprio, ficando voltado de pernas para o ar, embora não houvesse ar e as pernas fossem pedaços inúteis de carne indigesta.
— Creio que seria o mais indicado.
— E se ele não quiser?
Pela porta fechada entrou flutuando uma cadeira amarela, feita de chumbo pesado. Parou, numa travagem perigosa cheia do chiar de pneus, e recitou numa voz musical:
— “O painel de navegação pede a comparência imediata do piloto!”
Após o que voltou a sair. Pela porta fechada.
— Terá de ser ajustado! Aliás, há já algum tempo que ando a pensar fazer-lhe uma reparaçãozinha!
— Ele não vai gostar…
— Eu quero que ele se lixe!…
A galáxia de Andrómeda apareceu entre eles a girar, enquanto piscava os seus olhos pestanudos.
— Ainda estamos muito longe desta menina?
E ele apontava para a galáxia.
— Faltam ainda quase dois meses.
— Que chatice!…
A galáxia deitou-lhes a língua de fora, numa careta líquida, e partiu, deixando na parede um buraco de um Angström de espessura. A cadeira amarela regressou, quase simultaneamente, e recitou de novo a sua mensagem na mesma voz melíflua de há pouco. Depois, atravessou a porta entreaberta e eclipsou-se, deixando no ar o seu cheiro amarelo.
— Estás a ver? Ele ama-me!…
— O painel?
— Claro! Quem querias que fosse?
A nave estremeceu em breves gargalhadas. Um enorme sorriso surgiu, lá fora.
— Cala-te, nave!
O estremecimento aumentou.
— Bolas! disse ele, e coçou uma orelha com as pernas de trás, furioso, alaranjado.
— E que fazemos com o painel?
E a voz dele tinha a forma de uma serra mecânica: — Desliguemo-lo!
— Não, não podemos fazer isso…
Da parede saltou um velho castiçal, com velas redondas a arder, em espiral, enfunadas pela leve brisa que soprava do Norte.
— Poderiamos tentar mudar-lhe os gostos sexuais.
Uma leve ameaça roçou pelos cabelos dela, que se erguiam, sedosos, no ar.
— Não! Assim passaria a ser eu a vitima, nao pode ser!
— Pois sim, mas tu, pelo menos, não tens de dirigir esta nave, não és tu o piloto.
Um sorriso bebé nasceu na boca dela. Pôs-se de pé, lentamente, e atravessou a porta que se abriu, sorridente.
— Vou falar com ele, gritou ela através da porta fechada.
Ele ficou só, acompanhado de um grupo de estrelas e de uma cadeira. Pouco depois as estrelas sairam, aborrecidas, murmurando bramidos de tédio. Ele e a cadeira entreolharam-se com olhos baços e ele encolheu os ombros, indiferente. Pouco depois já dormia.
Acordou abracado à cadeira e sentiu uma humidade secreta na roupa. A cadeira olhava-o com olhos ambíguos e um sorriso estampado nas costas. A nave estremeceu e as paredes recuaram para o espaço. Risos cristalinos ecoaram no vazio ao mesmo tempo que as luzes se apagavam.
No entanto, cá de fora, do espaco, tudo se mostrava vulgar, convencional, feito de Ficção Científica comum: a nave vogava rápida em linha recta, estendendo uma colcha de fogo atrás de si, os motores rugiam de um modo quase felino e ao longe, num cenário de fita hollywoodesca, iam passando as estrelas e as galáxias numa cadência uniforme. Como é lógico e normal, as estrelas passavam muito mais rapidamente que as galáxias.
— Psst! Ana!
O murmúrio ecoou pela nave, ressaltando nos cantos como uma bola de pingue-pongue. Mas ela nada escutou. Ele compreendeu e deixou-os em paz.
Mais tarde encontraram-se:
— Então? Que tal?
— Mais ou menos. Ele nao é grande coisa, mas eu esperava pior.
Um sistema solar entrou pelo buraco deixado por Andrómeda e tentou contar-lhes, bêbedo, a história da sua vida. Eles fugiram-lhe, escapando-se através da única porta daquela sala. A tal que está sempre fechada.
— Sabes disse-lhe ele , eu estive com uma cadeira.
— Gostaste?
Encolheu os ombros.
— Sim…
Esvoaçavam algures na nave, perdidos. Ele tomou-lhe um pulso. Ela rodopiou, a saia de gaze estendendo-se em ondas marítimas pelo espaço e levou-o consigo em direcção ao tecto. Embora ali não houvesse tecto. Ele puxou-a para si.
— Ana… — disse ele.
— Sim?
Uma sombra vermelha cobriu as luzes.
— Gostava de experimentá-lo contigo.
— …
Algures na nave, num sítio perdido, as luzes fecharam os olhos.
Era uma vez um velho muito velho, um velho excitado e trémulo, como todos os velhos. Dizia este velho, como a maioria dos velhos, que a juventude estava perdida, completamente depravada, alienada, meu Deus, o que ele dizia! Achava inumana, abjecta, a actividade sexual com painéis, cadeiras, galáxias, etecetera. E dizia-o em alta gritaria a todos os que o quisessem ouvir. Não eram muitos.
Uma vez explicaram-lhe que as viagens espaciais são longas e aborrecidas, que as tripulações são formadas normalmente por dois tripulantes de, normalmente, sexos opostos, que a única coisa que eles têm para fazer nessas viagens é dar uma olhadela aos instrumentos de bordo de vez em quando, digamos, uma vez por mês, pois o computador encarrega-se de tudo, e que no tempo restante o tédio é o seu único companheiro. O tédio e os objectos inanimados, os painéis, cadeiras, galáxias, inumanidades. Assim, que melhor passatempo que o sexo?
O velho não quis compreender. Dizia que era imoral. Puxou da sua forma de razão, puxou de livros sagrados, puxou de leis poeirentas.
Então desafiaram-no a fazer uma pequena viagem, só até à Pequena Nuvem de Magalhães. Aceitou o desafio, se bem que relutante.
Dois meses mais tarde, a meio da viagem, a nave explodia em paroxismos de gozo.