Entre as estrelas

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Leio sempre com atenção e interesse o que João Campos escreve, em especial no seu blog Viagem a Andrómeda (tanto na versão «mínima» actual como na «máxima» anterior), e com ele já troquei mensagens, ideias, comentários, sobre temas da cultura, do cinema e da literatura, com incidência óbvia na FC & F, de que ele é um dos melhores, mais bem informados, competentes divulgadores actualmente em Portugal. O mais recente desses «diálogos» ocorreu em Janeiro último, depois de ele ter afirmado, em texto publicado no dia 15 daquele mês no VaA, que «”Interestelar” não mereceria em circunstância alguma a nomeação ao Óscar de melhor filme»…

… Pelo que lhe escrevi e perguntei: «portanto, pode deduzir-se que considera que a mais recente realização de Christopher Nolan tem qualidade inferior não só às dos oito filmes que efectivamente foram nomeados naquela categoria mas também às de outros dois que não foram nomeados (como sabe, podem concorrer ao principal prémio da Academia um total de 10). Já viu os oito filmes nomeados? E pode indicar outros dois que tenha visto, de 2014, que na sua opinião são melhores do que “Interestelar”? (…) Será mesmo que ele não foi, não é, um dos 10 melhores de 2014? Sinceramente, e apesar de (volto a dizê-lo) ainda não o ter visto (mas baseando-me no “currículo” do seu realizador), não acredito nisso. Porém, a verdade é que os prémios da Academia pouca ou nenhuma relevância têm – aliás, nunca tiveram – na consagração, na “imortalização”, das verdadeiras obras-primas cinematográficas. Não só no âmbito da FC & F, mas, neste género que preferimos, será interessante fazer alguns pequenos exercícios de memória: qual foi o “melhor filme” de 1968, ano de “2001”? E de 1982, ano de “Blade Runner”? E de 2002, ano de “Minority Report”? Não duvido de que estas três obras se tornaram mais culturalmente relevantes e influentes do que as três consideradas “melhores filmes” naqueles anos. (…) Quanto a Christopher Nolan, a AMPAS (Academia das Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood) apenas se cobre de ridículo por nunca o ter nomeado enquanto melhor realizador. Acaso pessoas com juízo (crítico, e outro) dariam em 2011 a “O Discurso do Rei” os prémios de filme e realizador quando tinham “Incepção” como alternativa? E alguém pode seriamente defender que “Argo” é melhor do que “O Cavaleiro Negro Ergue-se”?» Por isso, «a AMPAS que depois não se queixe das fracas audiências televisivas da cerimónia de entrega dos Óscares, inevitáveis quando filmes populares não concorrem aos prémios principais. Era suposto que o alargamento para um máximo de dez dos nomeados para “melhor filme” (decidida, crê-se, na sequência da não nomeação de “O Cavaleiro Negro” em 2009) servisse para recompensar, para reconhecer obras que obtêm sucesso comercial (mas não necessariamente crítico). Porém, e como se viu outra vez este ano, as “vagas” adicionais são preenchidas por “mais do mesmo”. Eles que não digam que não foram avisados…»

Embora tal não seja impossível, parece-me pouco provável que um realizador – qualquer que ele seja – que tenha atrás de si uma série de trabalhos anteriores de grande qualidade quebre repentinamente, quase que de um momento (de um filme) para o outro. No entanto, «nenhum artista (aliás, nenhuma pessoa) me suscita uma admiração incondicional e infinita. Não tenho quaisquer problemas em, quando tal se justifica, reconhecer que alguém que eu admiro falhou. Até agora, isso não aconteceu com Christopher Nolan. Mas já aconteceu com James Cameron, que eu “venerava” ao ponto de ter (e ainda tenho) quatro filmes dele (…) no meu “top 20” pessoal, e um deles ser inclusive o meu preferido de sempre. Porém, tal sentimento “quebrou-se” aquando de “Avatar”, não só por este me ter desiludido bastante mas também por, a partir daí, JC ter assumido cada vez mais posições político-ideológicas com as quais discordo totalmente, e de ter tido algumas atitudes pessoais que não abonaram muito em favor do seu carácter. Concordo que Ridley Scott ocasionalmente “mete o pé na argola” (o seu mais recente, “Exodus”, parece ser disso um exemplo), mas não (nunca) desceu tanto na minha consideração quanto Cameron. Tal como não deve haver inibição de criticar, também não deve haver inibição de elogiar. Não há (não deveria haver) “numerus clausus”, “prazo de validade”, para a qualidade, para o sucesso, para a admiração. Se um artista continua a produzir obras relevantes para além do que seria previsível, tal deve ser reconhecido. Nenhum “crítico” se deveria sentir menorizado, ou descredibilizado, por constatar a constância (positiva) de um autor; porém, o que me parece é que muitos se sentem constrangidos a não serem honestos nas suas avaliações para assim tentarem dar uma imagem de “equilíbrio”; preocupam-se mais com o seu estatuto pessoal de “juízes do gosto” do que com a relação de honestidade que dever(iam) manter com os seus leitores.»

Cerca de três meses depois, no final de Abril, finalmente vi «Interestelar». Honestamente só posso dizer que é melhor do que o único filme dos oito nomeados para os Óscares este ano que já vi no momento em que escrevo: «O Grande Hotel Budapeste», realizado por Wes Anderson. E apesar de só poder ter a certeza absoluta quando vir os outros sete, continua a não me parecer razoável que a mais recente realização de Christopher Nolan não merecesse um lugar entre os dez melhores de 2014. Sem revelar – porque não quero e não devo – pormenores importantes, posso todavia dizer o seguinte: as comparações com «2001» justificam-se porque «Interestelar» percorre o mesmo espaço – cósmico e ficcional – da obra-prima de Stanley Kubrick, mas, ao contrário desta, tem a coragem – ou o atrevimento – de (tentar) responder às perguntas que em 1968 foram apenas formuladas; Kubrick contou com a colaboração de Arthur C. Clarke, Nolan com a de Kip Thorne; também em «Interestelar» há uma «presença (ou influência) extraterrestre» decisiva no desenvolvimento da narrativa e no seu desenlace; contudo, ao contrário de «2001», nesta obra de Nolan é dado um destaque decisivo ao amor – em geral, e ao filial em particular – como factor fundamental na Humanidade e na sua (i)mortalidade; todos os que criticaram e ridicularizaram o aparente excesso de «sentimentalismo» em «Interestelar» quase de certeza não têm filhos (alguns sei que não têm); mas eu tenho, e (penso que) compreendi perfeitamente a mensagem; ser pai é passar a um outro patamar, a uma outra responsabilidade, a uma outra dignidade, que quase nos obriga a adquirir outras, novas, poderosas capacidades de comunicação e de entendimento, de acção e de sofrimento, fundamentais tanto num ordinário sedentarismo planetário como num extraordinário nomadismo entre as estrelas.