Anacronismo deliberado

Uma das mais jovens, talentosas e promissoras ficcionistas a serem reveladas nos últimos anos em Portugal no âmbito da Ficção Científica e Fantástico, Inês Botelho confirmou ser também uma não-ficcionista de valor, contribuindo crescentemente com críticas, crónicas e ensaios a partir de 2010, em especial na revista Bang! da Saída de Emergência, na qual, felizmente, recusando-se a seguir a subordinação «neo-ortográfica» que aquela editora impõe tanto na sua publicação como nos seus livros, a autora continua a escrever em normal e correcto Português…

… O que só vem reforçar a actualidade, acutilância e relevância das variadas  informações e observações que nos proporciona, invariavelmente muito bem escritas e constituindo intervenções válidas para um continuado e necessário debate sobre as principais tendências culturais desta pós-modernidade. Eis alguns exemplos (mais ou menos) recentes retirados da Bang!… Na Nº 28 (Março de 2020), «Por universos muito navegados», subscrevo a desconfiança perante o cada vez maior número de «sequelas», versões, «re-imaginações» e quejandos, que caracterizam o cinema norte-americano actual; e sem dúvida que, neste âmbito, a Walt Disney é a maior «culpada», o que é agravado por, na prática, há vários anos estar a trair a memória e o legado do seu fundador. Na Nº 30 (Outubro de 2021), «Espelhos nossos», reconheço, obviamente, que sobre a presença e a participação de mulheres nas indústrias das artes e do entretenimento sem dúvida que muito há ainda a fazer, mas é inegável que muito de bom já se fez e faz, dando no presente oportunidades a profissionais competentes e recordando e valorizando os contributos de pioneiras do passado; tudo isto, evidentemente, só é possível nas sociedades ocidentais, fundadas nos preceitos religiosos e morais judaico-cristãos; que diferença, ainda, para com (quase todos) os países muçulmanos, onde as mulheres ainda não usufruem dos direitos mais básicos. 

É porém na edição mais recente da Bang!, Nº 31, que está o artigo de Inês Botelho desta série que mais me despertou a atenção e a curiosidade… por poder – acredito que justificadamente, como tentarei demonstrar adiante – estabelecer uma conexão pessoal. Em «Outras vozes se alevantam» são divulgadas obras e autores que, em parte ou no todo, eu desconhecia; e faz-se referência ao peculiar «hábito» que se «intensifica» de «transladar mitos e personagens históricas para outras épocas ou para âmbitos de ficção científica», patente em livros tais como «Country» de Michael Hughes, «Ilium» de Dan Simmons, «The Mere Wife» de Maria Dahvana Headley e «Iron Widow» de Xiran Jay Zhao – principal destaque desta edição da revista, com direito à capa da mesma e entrevista, esta conduzida pela própria Inês – e em que «personagens preservam os nomes e as características-chave das suas contrapartes históricas, épocas e textos e costumes misturam-se num anacronismo deliberado». A autora canadiana de ascendência chinesa afirma, aliás, que «reimaginar figuras históricas no contexto do fantástico é uma certa tradição chinesa». Pois bem, a atenção e a curiosidade que estas estimulantes considerações me mereceram estão no facto de o meu romance «Espíritos das Luzes» já em 2009, quando foi publicado (e concluí-o em 2005), obedecer à mesma «lógica», funcionar segundo a mesma «mecânica», isto é, «transladar» personagens históricas – no caso do século XVIII, a maioria portuguesas mas também algumas estrangeiras – para um âmbito de ficção científica. Miguel Real, na primeira apresentação do meu livro, e depois na recensão sobre o mesmo publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias intitulada precisamente «O anacronismo como arte», afirma que aquele, «jogando esteticamente na categoria de anacronismo, opera uma paradoxal desproporção voluntária entre forma e conteúdo (…) – uma forma futurista integra um conteúdo e uma linguagem eminentemente clássicas, ou, dito de outro modo, uma narrativa futurista funda-se numa história real do passado distante.» Portanto, o meu romance e o da Sra. Zhao têm semelhanças… mas apenas no que concerne ao conceito narrativo de base; no resto é um mundo de distância – ela já teve mais notoriedade e sucesso em menos de um ano do que eu em mais de 13, e a diferença só irá aumentar… e para ela a adaptação cinematográfica não deverá tardar. É o que acontece quando um(a) vive e trabalha num ambiente favorável à FC & F e outro num que a despreza.

Dito isto, aconselho lógica e absolutamente a leitura e/ou a aquisição de «Viúva de Ferro», mas, obviamente, na sua versão original em Inglês, porque a «tradução» pela Saída de Emergência foi feita em sujeição ao infame AO90.

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