Há muitos anos atrás, a FNAC abriu as primeiras lojas em Portugal e foi o momento em que tomei contacto com o manga pela primeira vez. Os livros de BD japonesa apareciam nas prateleiras em francês, por isso poderão imaginar que as minhas primeiras experiências com manga foram peculiares – em francês. E uma das primeiras histórias que me cativou foi a história do pequeno ciborgue chamado Gally, na série GUNMM de Yukito Kishiro. Está série é conhecida no mundo anglo-saxónico por ALITA, BATTLE ANGEL, e não me cativou só a mim – fascinou James Cameron e tornou-se num dos seus projectos fetiche que concretizou finalmente com o realizador Robert Rodriguez recentemente. Infelizmente, não consegui apanhar o filme no cinema, mas vi-o outro dia em casa.
Alita é uma ciborgue pequena e feminina com imenso poder e habilidade, que ganha vida num mundo distópico dividido entre uma Terra bairro-de-lata e as luxuosas estações espaciais em órbita. Na Terra, praticamente toda a gente é um ciborgue, com alguma ou muita tecnologia integrada nos seus corpos. À medida que as capacidades e o valor de Alita se vão tornando óbvias, vários interesses poderosos começam a cobiçá-la, enquanto ela tenta descobrir a sua origem e razão de viver.
Mas o que diz tudo isto do nosso mundo? A Singularidade Tecnológica de Von Neumann, esse ponto onde a tecnologia ultrapassa a Humanidade, aproxima-se rapidamente. Não é apenas em filmes como ALITA, MATRIX, A.I., WESTWORLD e muitos outros: é um fenómeno que está de facto a acontecer na realidade. Todos os dias vemos imagens dos últimos robôs de aparência humana, ou de carros sem condutor, ou dos últimos drones a voarem sobre e entre nós. Ou vemos notícias sobre os desenvolvimentos do Big Data ou chatbots e Inteligência Artificial. Por isso, assustadora ou não, cá está ela.
Não é a primeira vez que o advento das máquinas ameaça os Humanos. Há séculos atrás, quase toda a Humanidade trabalhava a terra ou vivia da terra. Havia outras profissões, claro, como guerreiros, ferreiros ou sacerdotes e comerciantes, mas estas eram minorias. A agricultura reinava. Até que as máquinas chegaram e tornaram tudo ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. A partir do século XVIII a sociedade tem sentido as convulsões das revoluções tecnológicas umas atrás das outras que mudaram a nossa vida para sempre. Em primeiro lugar as máquinas a vapor na agricultura e afins, depois os caminhos-de-ferro, depois a electricidade, depois os motores de combustão interna, depois muitas outras coisas incluindo a aviação e a computação. Isto levou a muitas perturbações, incluindo as nossas piores guerras e massacres para além da imaginação. Mas também nos trouxe, na prática, o fim da escravatura, a explosão da educação, o desenvolvimento da medicina moderna, a revolução no turismo e nas viagens, a televisão e o cinema, a Fronteira Espacial, a Internet, etc.
Enquanto estas transformações estavam a acontecer, o papel do Homem no Universo estava a mudar dramaticamente. Se já não era necessário que lavrasse a terra, o que poderia fazer? Virámo-nos para a indústria. No início do século XVIII, a maior parte das coisas usadas pelas pessoas, como mesas, canetas, espadas, pratos, chapéus, era manufacturado por uma ou um pequeno grupo de pessoas. Hoje, após as revoluções, olhamos em volta e tudo o que usamos implicou o trabalho de milhares. Os nossos copos, mesas, facas, chapéus, carros, computadores, foram feitos por designers que os desenharam; mineiros que tiraram os materiais da terra; profissionais que fizeram a tinta, o plástico, as peças, a montagem; trabalhadores de manutenção olearam as máquinas que os fizeram; vendedores venderam cada um dos componentes; pessoal de Marketing criou os anúncios onde vimos estes produtos pela primeira vez; camionistas levaram os produtos para as lojas; e lojistas e gestores de lojas, etc, etc, etc. O novo paradigma é um paradigma onde todos trabalhamos para todos, potenciando as nossas capacidades – não é um paradigma local.
Por outro lado, passámos a trabalhar menos horas, as posições na sociedade ficaram menos restritivas, deixámos de ser prisioneiros da terra, incapazes de tomar as nossas próprias decisões. E por isso agora trabalhamos apenas 7 ou 8 horas por dia em vez de 12 ou mais, durante 5 dias por semana em vez de 7. E temos férias pagas, sindicatos, subsídios de desemprego, saúde pública, escolaridade obrigatória, muitos livros, muita arte, muita música todo o dia, uma dieta variada, etc.
Ao mesmo tempo, documentos como a Constituição dos EUA e outras constituições, aclamavam que: ‘Todos os homens são criados iguais’, que tínhamos liberdade de expressão e de intervir na vida pública. E mesmo as mulheres podiam ser tão importantes como os homens, tomar as suas próprias decisões e até (Deus nos ajude!) votar!
É por isso que hoje vemos a Revolução Industrial como um passo positivo na Evolução do Homem. Para muitos, quando estava a acontecer pareceria o fim do mundo. Por isso talvez a Singularidade seja também uma oportunidade. Poderá dizer que trabalharemos menos horas e que podemos dedicar-nos a trabalhos mais criativos ou outros que nem conseguimos imaginar neste momento.
Mas também não é absurdo imaginar um futuro distópico como o de Alita. Desesperado e injusto, assolado por desequilíbrios climáticos e sociais onde resquícios de um Antigo Regime ainda parasitam o capitalismo moderno. Mas também é possível que a Singularidade traga a oportunidade de mudar este futuro – de nos trazer a todos para um patamar diferente. Enfim… Os dados estão lançados.