Para todos os efeitos, uma nova incursão de Terry Gilliam pelos territórios da ficção científica será sempre um acontecimento, algo a registar e a acompanhar com atenção - trata-se, afinal, do realizador que assinou dois dos mais memoráveis filmes que o género conheceu nos últimos trinta anos, com a burocracia distópica de Brazil e com o pré-e-pós-apocalipse surreal de 12 Monkeys, na sua reinvenção criativa do extraordinário La Jetée, de Chris Marker. Depois de outras aventuras e de outros projectos, Gilliam regressou por fim ao género no qual deixou uma marca indelével, com o propósito de encerrar a sua trilogia temática de contornos orwellianos - e eis que em 2014 chega às salas The Zero Theorem, filme estreado em 2013 no circuito de festivais de cinema, tendo gerado opiniões divisivas desde então.
Uma vez mais, Gilliam coloca o seu protagonista no centro de um futuro caótico e de cariz distópico - e a Jonathan Pryce e a Bruce Willis segue-se Christopher Waltz no papel de Qohen Leth, um programador informático (o termo mais correcto é entity cruncher, que sou manifestamente incapaz de traduzir no contexto) cujo génio no desempenho do seu trabalho só é comparável à reclusão profunda em que vive e à sua absoluta incapacidade de conviver com outras pessoas. Qohen vive numa enorme igreja abandonada e degradada, da qual sai todos os dias contrariado para o seu trabalho diário num cubículo das instalações da megacorporação Mancom - mas sonha com o dia em que possa passar a trabalhar a partir da quietude do seu templo-casa, sem contactos forçados ou distracções desnecessárias.
O seu motivo, porém, é outro: Qohen aguarda com ansiedade pelo retorno de uma chamada telefónica interrompida anos antes, e que acredita conter o sentido para a sua existência. O seu segredo acaba por ser concedido após a ida (a muito custo) a uma festa organizada pelo seu supervisor, Jory (David Thewlis), onde conhece em circunstâncias invulgares Bainsley (Mélanie Thierry) e o líder da Mancom. Livre para trabalhar sossegado e evitar saídas desnecessárias, é é-lhe atribuída uma nova tarefa: resolver o célebre Teorema Zero. Qohen desconhece o propósito da equação, mas dedica-se com afinco ao desafio. Talvez com demasiado afinco.
The Zero Theorem é, inegavelmente, Terry Gilliam em estado puro - nota-se no surrealismo com que constrói cada cena, com que anima cada momento do filme. Afastando-se dos tons sombrios dos filmes anteriores, o cineasta aposta numa profusão caótica de imagens coloridas, intensas, intrusivas - a caminhada de Qohen mostra um mundo coberto por publicidade direccionada, como que uma alusão descontrolada e hiperbólica à omnipresença publicitária de Minority Report. Gilliam não se inibe em momento algum: cada pormenor esconde um easter egg, uma alusão, uma desconstrução, um rosto conhecido. A Igreja de Batman, o Redentor fica na memória, claro - mas há mais, e só por si justificam em pleno uma segunda ou uma terceira visualização.
Mas a construção luminosa e colorida da distopia de The Zero Theorem nem por isso a torna menos opressiva que a de Brazil - ou menos omnisciente. Vemos isso pela intrusão publicitária, claro; e pelo ambiente de trabalho da Mancom, brilhantemente desmontado em duas ou três frases por Qohen; e pelo controlo rígido do teu trabalho a partir de casa (numa crítica acutilante às filosofias laborais contemporâneas), tanto pelos relatórios constantes como pela vigilância intrusiva em todos os recantos da sua casa, num simbolismo tão evidente como interessante pelo seu significado. A sátira prossegue, aguçada no seu tom exagerado (e por vezes grotesco), estendendo-se às relações humanas - a festa de Jory é excepcional pela forma como ilustra as "ligações" contemporâneas, a ilusão do contacto, o isolamento na multidão.
É interessante notar como o argumento de Pat Rushin complementa na perfeição a visão caótica e imaginativa de Gilliam - a vida de Qohen, com a sua espera insana por uma chamada que nem sabe se foi real, é uma entrada directa no absurdo de Samuel Beckett em En Attendant Godot. Mas é a referência directa a The Matrix, facilmente identificável por qualquer fã de ficção científica, que acaba por se revelar fundamental, e não apenas pelo seu carácter de easter egg ou pela consciência que manifesta do género em que todo o filme se insere. Medida com rigor e colocada com toda a intenção, a deixa funciona como um resumo excepcional da personalidade de Qohen através de uma antítese tão inesperada como irónica: enquanto Neo escolheu abandonar o locus amoenus ilusório e virtual para enfrentar uma realidade agreste e ilusória, Qohen mostrou-se disposto a abdicar do locus horribilis da realidade, estranha e indiferente, em busca da ilusão virtual de sossego com Bainsley. Não deixa de ser irónico, porém, que tanto Neo como Qohen apenas possam ser de facto especiais no refúgio virtual, e não no mundo dito real.
Christoph Waltz carrega o filme em ombros sem dificuldade - o seu desempenho como Qohen é excepcional na aparência algo paranóica da personagem, com os seus trejeitos e maneirismos a darem-lhe uma personalidade muito própria. O restante elenco não lhe fica atrás: Mélanie Thierry é soberba como Bainsley, transitando com mestria da versão femme fatale para a desilusão final; David Thewlis está hiperactivo como Jory; e Lucas Hedges é notável como Bob, o filho misterioso e genial do patrão de Qohen. Os cameos são excepcionais - Tilda Swinton, surgindo como a Drª Shrink-Rom (a psiquiatra digital do protagonista), tem uma presença espantosa para quem está confinada a um ecrã minimalista; e Matt Damon emerge com uma interpretação surreal. A banda sonora de George Fentom é a cereja sobre o bolo.
É possível que falte a The Zero Theorem a ironia de Brazil ou a consistência narrativa de 12 Monkeys, com a sua reviravolta final memorável. Nem por isso, porém, surge aqui como uma obra menor da filmografia do cineasta e ex-Monty Python: ciente de que a ficção científica de qualidade acaba por ser tanto ou mais sobre o presente do que sobre o futuro, Gilliam explora as idiossincrasias de um mundo contemporâneo always online através da sua sátira mordaz e colorida, numa distopia garrida cuja luminosidade aparente não esconde por completo quão sombria é. E no meio do caos coloca a tragédia de um homem sozinho, em busca de um significado para algo que, em última análise, pode não ter significado algum. O elenco talentoso eleva a parada; mas é o surrealismo simbólico de Gilliam e Rushin que fazem de The Zero Theorem um dos acontecimentos cinematográficos da ficção científica deste ano. 8.6/10
The Zero Theorem (2013)
Realização de Terry Gilliam
Argumento de Pat Rushin
Com Christoph Waltz, Mélanie Thierry, David Thewlis, Lucas Hedges, Tilda Swinton e Matt Damon
107 minutos