O romance é dividido em oito partes, intituladas "Nossa Senhora" disto ou daquilo, e cada parte divide-se em três tempos, com as suas personagens e ambiente próprios. Um presente (em relação ao ano em que McDonald escreveu o livro, entenda-se; já passaram alguns), centrado numa moderninha carioca, produtora de reality shows, tão fútil e arrivista como se poderá supor de tal atividade. Um futuro, ambientado numa São Paulo ciberpunk de daqui a 20 anos e centrado num malandro de rua repleto de "jeitinho brasileiro", bissexual e trapaceiro, que muda de identidade como quem muda de cuecas. E um terceiro ambientado na época do Brasil colonial do início do século XVIII e centrado num jesuíta irlandês com um gostinho especial pela violência, que recebe a incumbência de mergulhar profundamente na Amazónia para averiguar o que se passa com um padre que terá enlouquecido, criando aí uma espécie de reino, implacavelmente rigoroso, consigo no trono.
E tudo isto regado a física quântica.
O livro tem interesse. Dele ressalta, principalmente, a magnífica qualidade descritiva da prosa de McDonald, capaz de criar ambientes complexos com pinceladas precisas, que com frequência chegam até a ser poéticas. O encadeamento das três histórias, a forma como elas se vão a pouco e pouco fundindo até à apoteose final, também está muito bem feito. Parte das ideias de que se socorre tem, igualmente, grande qualidade e o autor usa-as quase sempre com mestria, introduzindo-as na trama sem grandes infodumps nem oscilações de ritmo. McDonald é um bom escritor, provavelmente um dos melhores estilistas que estão atualmente em atividade na ficção científica anglófona, e isso fica aqui claro, mesmo na nem sempre bem sucedida tradução portuguesa.
Mas o livro não é perfeito. E julgo que devo advertir quem for alérgico a revelações sobre o enredo para pararem de ler aqui, ou para saltarem para o penúltimo parágrafo, pois vou ter de fazer algumas.
Quando as três histórias começam a fundir-se, o leitor depressa compreende que algo de invulgar ali se passa. E começa a compreender o quê quando, pouco depois, repara no repetido surgimento de umas peculiares facas quânticas, que cortam tudo e mais alguma coisa, deixando atrás de si uma luminescência azulada.
Até aqui, tudo bem.
A porca torce o proverbial rabo quando descobrimos que estamos num cenário de universos paralelos, ainda que com a nuance de não serem propriamente universos mas simulações num gigantesco computador quântico, algures no longínquo fim frio do Universo (fazendo lembrar um pouco o cenário descrito em Darwinia), no meio de uma guerra entre duas fações: a daqueles que pretendem manter as simulações isoladas da realidade até ao fim, e a dos que tentam revelar a verdade aos "sims". O problema é que os porquês não ficam minimamente claros. Não sei se por deficiência (ou escolha) do autor, se por insuficiências da tradução, não se percebe que ideias estão por trás das partes em conflito e portanto do conflito. Por que motivos uns acham necessário divulgar a informação e outros mantê-la secreta. Pior: como nos é dito que as simulações funcionam segundo a lógica das ramificações infinitas nos universos paralelos, aquela lógica segundo a qual um ato diferente dá origem a um novo universo, que vai seguir um novo caminho com esse ponto de divergência relativamente ao "original", a lógica afirma que qualquer tentativa de interferência de uns universos noutros só irá conseguir criar universos novos, não alterar os antigos. Portanto é fútil. Logo a própria guerra é fútil. Logo não faz sentido.
E isto, para mim, estraga a história.
E eu, que estava a gostar bastante até ao último quarto do livro, mesmo apesar de um certo excesso de exotismo, de um Brasil muito colado a uma visão excessivamente folclórica — excessivamente gringa — do país que não corresponde por inteiro à realidade, acabei por achar penosa a leitura do resto. Porque, pura e simplesmente, deixei de acreditar naquilo. A suspensão da descrença desfez-se. E é pena. McDonald é capaz de melhor.
Este livro foi comprado.