Arquivo do dia: 2013-01-19
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Forças do Mercado (bib.) é um romance de ficção científica de Richard Morgan, ambientado num futuro próximo no qual a sociedade britânica se transformou no sonho molhado dos neoliberais. O Estado, basicamente, não existe, pois mesmo o pouco que dele ainda vai subsistindo formalmente não passa de uma marioneta nas mãos de interesses corporativos. A sociedade, quer a britânica, quer a generalidade das restantes, embora não exatamente da mesma forma, é dominada por um punhado de corporações privadas nas quais impera a ética do guerreiro. No mundo corporativo vale tudo desde que se dê lucro à empresa. O lucro traz-te promoções, faças o que fizeres para o obter. O falhanço em obtê-lo, bem, esse traz-te a morte.
E a morte pode chegar vinda de uma série de sítios diferentes, mas em geral toma a forma de um espalhafatoso acidente numa auto-estrada vazia. É que os executivos de topo neste mundo de Morgan são guerreiros do asfalto, gladiadores ao volante de automóveis topo de gama, artilhados com o último grito da tecnologia de blindagem, de travões, de motor, etc. Há que se ser rápido de reflexos. Há que se ser impiedoso. Há que se saber explorar os pontos fracos dos adversários assim que surja a mínima oportunidade. Cair sobre a jugular assim que esta se mostre, sem hesitações nem misericórdia. Porque só assim se ganham contratos (os quais geralmente envolvem a manipulação política e militar, e portanto económica, em países do Terceiro Mundo) e porque só assim se ascende na escada empresarial.
E porque só ascendendo na escada empresarial se pode evitar cair nas zonas, que é onde vive a generalidade da população neste radioso paraíso empresarial, zonas degradadas e abandonadas à violência dos gangues, onde as pessoas fazem o que têm a fazer para sobreviver mergulhadas em miséria e doenças, presos a esses guetos económicos e sociais tanto pelos preconceitos dos privilegiados, como pela sua própria miséria. Mas sempre há quem vá conseguindo abandonar esse mundo ou erguer-se acima dele. Através de truques e artimanhas, nos casos mais éticos. Por via do crime violento nos que o são menos.
Chris Faulkner, o protagonista do romance, é um desses homens. Chegou ao mundo empresarial através da fraude, e aí permaneceu (e nele foi subindo) por ser rápido e decidido. Um self made man, disposto a tudo apesar de atormentado por uma consciência que aos outros parece faltar. E por uma mulher inconvencional, que vive uma relação cada vez mais difícil com o que ele faz para ganhar dinheiro, e que assiste de uma forma cada vez mais repugnada às alterações que ele vai sofrendo. É este conflito, entre uma humanidade que ainda vai resistindo, apesar de tudo, e um ambiente que a tenta destruir com o máximo de violência, que empresta ao romance a grande força que ele tem.
Esse conflito e os aterradores paralelismos entre a situação que ele descreve e aquela que hoje vivemos. Porque estamos na antecâmara desse mundo, dominados por gente que põe os interesses privados, deles e dos amigos, acima de quaisquer outros, governados por gente sem valores nem um pingo de decência humana, gente que acha normal recorrer-se a qualquer baixaria para levar a sua avante. Se esta gente vencer, o mundo que nos espera é o que Morgan descreve neste romance. Não será tal e qual, não o imitará em todos os detalhes, mas em linhas gerais será isto, sim. É este o resultado da redução do Estado a quase nada. É este o resultado de entregar tudo às forças do mercado. E é isso que Morgan aqui nos mostra.
Forças do Mercado é um grande livro. Um belo romance de ficção científica que, como sempre acontece com a melhor ficção científica, fala do futuro para falar do presente. E por isso mesmo deve ter vendido muito mal. As ovelhas detestam quem as tenta alertar para estarem a ser levadas para o matadouro.
Este livro foi comprado.
Evocando sentimentos pessoais, mas através de imagens inesperadas, este é um conjunto de poemas em que texto e ilustração se complementam, para transmitir, em simultâneo, a familiaridade e a estranheza do sujeito poético, na sua visão do mundo. Evoca-se nostalgia e afecto, ideais e vontades de mudar o mundo, mas também algo de melancolia e de desilusão na percepção de se ser uma única parte de um todo maior. Fala-se de sentimentos universais, na perspectiva muito pessoal da voz que os expõe, mas com um cenário e uma percepção exclusivas do indivíduo e, por isso, diferentes e particulares. O resultado é uma poesia elaborada nas imagens que constrói, livre a nível de estrutura e muito interessante no equilíbrio entre proximidades e divergências.
Há muitos pontos, na identidade do "eu" destes poemas, de fácil compreensão para quem lê. O sonho, o amor, a ideia de um mundo possivelmente melhor - e, por outro lado, a nostalgia, a saudade, a sensação de algo que se perdeu - são facilmente reconhecidos nas palavras destes poemas. A sua forma de expressão, ainda assim, tem algo de próprio, quer pela peculiaridade dos cenários em que se incluem, quer pela própria elaboração da linguagem, que reforça a complexidade desse ambiente invulgar. São, na verdade, os poemas mais elaborados, os mais marcantes do livro, já que, ao afastar normas estruturais e o ocasional recurso à rima, permitem uma expressão mais livre de todas as complexidades da ideia.
O mesmo equilíbrio entre normal e invulgar surge também na relação entre o texto e a ilustração. Esta é, no seu essencial, bastante simples, mas parece adequar-se na perfeição ao texto, criando para ele uma imagem visual mais clara e, por vezes, tornando mais completa a visão do conjunto. Não são imagens particularmente elaboradas, o que reforça um pouco mais o contraste entre a simplicidade externa e as complexidades interiores, mas embelezam a edição, ao mesmo tempo que realçam o impacto de alguns poemas.
Há alguns poemas particularmente marcantes, que sobressaem relativamente aos outros, quer pelo impacto do conteúdo, quer pela melhor construção a nível de estrutura e linguagem. Estes, em particular, ficam na memória bem depois de terminada a leitura. Ainda assim, há em todos eles algo de interessante para descobrir, e a verdade é que até o mais simples dos poemas deste livro contribui para a imagem global do indivíduo através da passagem do tempo e da vida. Imagem que é, no fim de contas, a que sempre sobressai deste conjunto. Muito bom.
Rabindranath Tagore: delicadeza indiana.