Auto do Extermínio (bib.) é uma longa noveleta de Cirilo S. Lemos que se pode enquadrar naquele retrofuturismo mais fiel à história alternativa, apesar de conter alguns elementos de outros géneros. E é, diga-se desde já, uma excelente noveleta. Ambientada no Brasil, como aliás tem sido quase sempre o caso no livro em que se insere, mostra-nos o país em plena convulsão política, nos últimos estertores de uma monarquia prolongada até bem dentro do século XX, agitado por comunistas por um lado e fascistas pelo outro, com o exército, republicano, a constituir uma quarta fação, talvez a mais poderosa, talvez a que mais cordelinhos puxa, dominada por um tal general Protásio Vargas que além de ambilção pessoal pode, ou não, ser também movido por interesses estrangeiros.
A história em si mesma é uma história sobre a conquista do poder, sobre atentados e movimentações de bastidores, sobre armas secretas sofisticadas (para o nível tecnológico de meados do século XX, entenda-se, embora também haja um clone metido ao barulho) e assassinos orientados por capacidades premonitórias especiais. Uma história cheia de peripécias e reviravoltas, como costumam ser as histórias de todas as revoluções, e que portanto tem do princípio ao fim esse interesse, o interesse de se saber quem sairá vencedor. Mas é, sobretudo, uma história muito bem escrita — salvo um par e meio de erros de revisão —, com um magnífico ritmo e pormenores cheios de algo a que só posso chamar literatura. Tudo, ou quase, muito bom.
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Arquivo do dia: 2012-12-29
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Num instante, tudo mudou. A guerra acabara de começar e Tatiana estava na rua, esquecida do que tinha de fazer. Foi nesse momento que o viu e, quando ele atravessou para o seu lado da rua, Tatiana deixou de saber o que fazer. Foi assim que o conheceu. Alexander, tenente do Exército Vermelho, um homem com um segredo. E a partir desse instante começa a sua atribulada história. Pois nem só a guerra está contra eles. Para Tatiana, Alexander é impossível porque é o namorado da irmã. Já ele quer gritar a verdade aos quatros ventos, mas tem um amigo - um amigo que tem a sua vida nas mãos - que quer tudo o que ele tem e tudo destruirá para o obter. É preciso mentir, esconder, fingir até ao fim. Mas o que os une é demasiado para que seja o que for os possa separar. Nem a guerra, nem o Inverno e a fome, nem a simples vontade de se manterem um ao outro em segurança. Tatiana e Alexander estão sozinhos no centro do conflito - do do mundo e do seu. E pode o amor vencer tudo, quando tudo está contra eles?
O que mais surpreende neste livro é a capacidade da autora de interligar a história individual das personagens com a da situação global do mundo em volta, numa história que é tanto a dos protagonistas como a da época em que vivem, mas que nunca perde de vista o elo pessoal que desperta empatia. É impressionante o retrato traçado para as dificuldades do Inverno em Leninegrado, para as consequências da guerra - a fome, os feridos, a morte - e para o ambiente de opressão vivido na União Soviética de Estaline. Mas é igualmente impressionante o retrato traçado para o jovem Alexander, com o seu amor infinito e o instinto super-protector, a necessidade de carregar um segredo e de mentir porque é preciso, e a exuberância dos sentimentos quando os pode mostrar. E o crescimento de Tatiana, da rapariga inocente, elo mais fraco de uma família fraca, para alguém capaz de fazer tudo o que for preciso pelo seu amor. Corajosa, mas vulnerável, com dúvidas dilacerantes, mas com a certeza do que é preciso fazer.
Complexos, completos e humanos. Assim se apresentam os protagonistas deste livro. Mas nem só as personagens evoluem, também o enredo cresce em complexidade, à medida que a situação se torna mais difícil e a percepção que os protagonistas têm do mundo evolui. No fundo, Tatiana e Alexander compensam as fragilidades um do outro e os seus momentos de dependência e de fingimento - Tatiana em Lazarevo, Alexander com a sua desagradável ligação a Dimitri - realçam uma necessária capacidade de resistência. Mesmo nas situações mais peculiares - e há algumas - realçam o lado menos tolerável de algumas personagens, a forma como esse momento contribui para o crescimento da relação entre os protagonistas acaba por compensar a estranheza da situação.
Este é o primeiro volume de uma trilogia, pelo que, naturalmente, ficam bastantes perguntas sem resposta. Mas, tendo em conta a evolução do enredo, o final deste primeiro livro afigura-se como o único adequado e a intensidade emocional desses últimos momentos é de tal forma marcante que, com tudo o que não diz e com o impacto do que é revelado, fica, imediatamente, a vontade de saber o que virá depois.
Cativante desde as primeiras páginas e poderosíssimo nos momentos mais emotivos, este é, pois, um livro que marca tanto pelo retrato do ambiente em que decorre como pela coragem, ante as vicissitudes, das personagens que o protagonizam. Marcante, intenso e comovente, um livro que equilibra na perfeição o global e o individual, para criar uma história belíssima, da qual fica, ainda, muito por dizer. Recomendo.