Viagem no Tempo
Terminada a sessão da oficina de escrita criativa, Carlos Neves fechou o moleskine, guardou a caneta e saiu da sala.
“Viagens no tempo!”, pensava ele. “Estes tutores têm uma falta de imaginação! E eu com tanta coisa que fazer, como vou arranjar tempo para escrever um conto de 3 páginas sobre viagens no tempo. Já está tudo escrito sobre viagens no tempo!”
E com estes pensamentos sombrios, onde dominava a sensação angustiante da falta de tempo, Carlos ia caminhando em direcção à estação do Metro, passando em revista mentalmente todas as tarefas que o aguardavam quando chegasse à Faculdade: duas aulas para preparar, uma tese de mestrado e dois trabalhos finais de curso para ler, testes para corrigir... Ia ser uma semana infernal!
Chegou ao fim do dia cansadíssimo, e com um montão de tarefas ainda inacabadas. Jantou no restaurante que fica na esquina da rua onde mora, aceitando a sugestão do empregado - “a carninha à jardineira está muito boa, sotôr” - e empurrando a comida com uma cerveja.
Entrou em casa e esparramou-se no sofá da sala, sem se dar ao traba lho de ligar a televisão. Foi então que os seus olhos pousaram sobre o livro que tinha trazido de casa da tia Leocádia.
Há cerca de 15 dias, desapareceu. Deixou de telefonar ao irmão, já velhote, que começou a ficar preocupado e contactou Carlos. Este foi com o tio a casa de Leocádia. Entraram e tirando algum pó sobre a superfície dos móveis, tudo parecia normal, até chegarem à cozinha. Aqui encontraram no chão de tijoleira um círculo com cerca de um metro de diâmetro feito com pedrinhas, no exterior do qual, e na direcção dos 4 pontos cardeais, estavam posicionados quatro pequenos castiçais onde pareciam ter ardido completamente as velas. E na bancada da cozinha havia um livro de capa preta de aspecto antigo.
O tio resmungava: “Esta Leocádia, sempre com a mania das magias e dos feitiços. Onde é que se terá metido?”
“Tio Januário, não se preocupe, a tia provavelmente foi viajar e não se deu ao trabalho de avisar, parece que não conhece a sua irmã, amanhã ou depois recebe um postal dela de Katmandu ou da Patagónia ou de outro sítio desses”, ia dizendo Carlos para sossegar o velhote.
Começava com um índice, listando metodicamente os feitiços constantes do livro. Vagamente divertido, Carlos foi lendo uma longa sequência de feitiços, para fazer aparecer o sol num dia de chuva, para encontrar objectos perdidos, para eliminar o mau olhado causado por inveja, para influenciar outra pessoa numa reunião de negócios... E foi quando já estava a achar um pouco monótona aquela longa sucessão de receitas que Carlos chegou a uma linha que o fez parar: “Feitiço para voltar atrás no tempo sabendo o que sei hoje”.
Era a solução para os seus problemas, pensou Carlos. Recuando uns dias, uma semana seria bastante, teria tempo para fazer as coisas que se acumulavam com os prazos perigosamente curtos, entre elas escrever o estuporado conto sobre Viagens no Tempo.
Foi fácil encontrar o feitiço, porque a tia tinha paginado o livro, usando numeração romana (!), a meio do topo de cada página. E Carlos começou a ler:
No chão de pedra o círculo temporal
com 5 palmos através
desenharás com fuligem de queimar madeira.
Ao Norte e ao Sul porás sal;
Ao Este e Oeste porás cinza.
No centro te colocarás e não
poderás ter metal sobre ti.
Chamarás então as forças temporais
lendo a seguinte invocação
:
Tempo que existes desde antes do princípio
Tempo que existirás depois do fim
Através de ti passa tudo o que se sente
Leva-me para trás ____ voltas do Sol
Mas só o meu corpo, não toques na minha mente.
Pareceu a Carlos uma receita fácil de executar. E resolveu passar à acção. Foi à lareira que tinha funcionado pela última vez na noite da passagem do ano, e recolheu alguma cinza, que guardou num envelope. Foi à cozinha e tirou o saleiro do armário onde guardava os temperos. Voltou à lareira e retirou três ou quatro fragmentos de madeira carbonizada. Levou tudo para o hall da entrada, única divisão do apartamento que tinha o chão de pedra, todas as outras tinham soalho de madeira, e a cozinha e casa de banho eram pavimentadas com mosaico. Tirou ainda da despensa um rolo de corda que tinha comprado para substituir a do estendal da roupa, substituição essa que constituia um dos seus projectos sucessivamente adiados.
Cuidadosamente mediu então cinco palmos de corda, que cortou. Dobrou esse pedaço de corda ao meio, e utilizou essa corda dupla como um compasso primitivo que lhe permitiu, usando um pedaço de madeira carbonizada, traçar no chão de pedra um círculo com o diâmetro requerido.
Foi ainda buscar uma bússola para localizar os pontos cardeais e lá colocou o sal e a cinza como escrito no feitiço.
Tirou as chaves do bolso, o relógio do pulso e o anel do dedo, e descalçou-se, não fosse dar-se o caso de as anilhas metálicas dos atacadores dos sapatos afectarem o processo. Verificou se estava tudo em ordem, pegou no livro, colocou-se no meio do círculo e o seu último pensamento antes de começar a ler a invocação foi que para, entre outras coisas, escrever um conto sobre Viagens no Tempo ia ele próprio viajar no tempo!
E leu a invocação às forças temporais, terminando com “Leva-me para trás sete voltas do Sol / Mas só o meu corpo, não toques na minha mente.”
Carlos não sentiu que alguma coisa se tivesse passado. Inconscientemente, estava à espera de luzes, barulho, nem ele sabia o quê.
Saiu do círculo, calçou-se com alguma dificuldade – doeram-lhe as articulações dos joelhos – e quando se levantou sentiu uma tontura. Além disso, ao passar a língua pelos dentes detectou uns intervalos estranhos.
Foi à casa de banho, e quando se olhou no espelho sobre o lavatório, sentiu um choque: aquela imagem não era ele! A cara cheia de rugas, o cabelo ralo e totalmente branco, e quando abriu a boca logo verificou a falta de vários dentes. Tinha envelhecido!
Carlos regressou à sala para se acalmar. Pegou novamente no livro da tia e leu com atenção o feitiço que tinha acabado de fazer, para ver se inadvertidamente teria falhado algum passo do procedimento. Mas não, tinha seguido tudo à risca. Foi então que reparou no canto inferior direito da página uma pequenina seta. Virou a folha e no topo da página de trás estava escrito:
Aviso muito importante!
O recuar no tempo afecta o delicado equilíbrio do mundo. Antes de voltar atrás no tempo, o praticante deve primeiro realizar um feitiço que proteja o seu corpo das consequências maléficas desse desequilíbrio provocado, fazendo essas consequências ser descarregadas sobre as almas do Inferno, a quem não fará grande diferença esse acréscimo nas penas.
E seguia-se o texto que devia ser lido com essa finalidade, e que Carlos já nem leu, porque obviamente não iria funcionar depois do recuo temporal!
Portanto as “consequências maléficas” do tal desequilíbrio tinham-no feito envelhecer uns quantos anos. Diabo de “delicado equilíbrio”!
Respirou fundo duas ou três vezes, e pegou novamente no livro, para continuar a ler o Indice. A tia Leocádia era completamente maluca. Tinha copiado feitiços como quem copia receitas de cozinha! Feitiços para fazer um pardal cantar como um rouxinol, para se tornar invisivel (este tinha um aviso que dizia ser o efeito limitado no tempo), para fazer desaparecer os cabelos brancos (não seria melhor uma visita ao cabeleireiro, pensou Carlos) e subitamente encontrou um título que dizia “Feitiço para viajar ao tempo que ainda não foi”.
Deve ser um processo para viajar ao futuro, pensou ele. Talvez eu possa avançar os 7 dias que recuei e reverter esta situação. A página era a LXIII, e Carlos começou a folhear o livro quase em pânico até chegar à página LXV; e a anterior era a LXII; e um calafrio percorreu-lhe o corpo enquanto lentamente se convencia de que faltava a folha correspondente às páginas LXIII e LXIV.
E de súbito, como num filme, reviu a cozinha da tia Leocádia, o círculo de pedras no chão, as velas queimadas, e a conclusão foi óbvia: a tia tinha de facto viajado, mas para o futuro. E tinha rasgado a folha do livro para que mais ninguém o pudesse fazer!
Carlos suspirou, e decidiu ir deitar-se. No dia seguinte teria que telefonar para uma clínica a marcar um check-up; não sabia quantos anos teria envelhecido, mas o estado dos seus dentes não pressagiava nada de bom. E teria de arranjar uma explicação plausível para o seu novo aspecto.
Raios partissem a tia Leocádia!