From ghoulies and ghosties
And long-leggety beasties
And things that go bump in the night,
Good Lord, deliver us!
Oração da Cornualha
“Cala-te, estás sempre bêbado!”, William Morris resmungou para consigo próprio, enquanto cambaleava ao longo da rua deserta.
Ora embatendo nos postes de iluminação ou escorregando no piso molhado, não podia deixar de rogar uma praga em alta voz sempre que caía, o que fazia acudir à janela o madrugador mais curioso. Só se calou quando finalmente tropeçou num arbusto, tombando sobre os seus ramos espinhosos, que lhe perfuraram a pele e rasgaram a roupa. William não se preocupou mais em se recompor e ali adormeceu, de tão intoxicado estava pelos fumos do álcool.
Então, e após o lapso de uma hora, toda a vizinhança foi acordada por William, que berrando desalmadamente, corria em desajeito pela rua fora. Por entre as frestas dos estores de madeira ou através dos transparentes cortinados de linho, as pessoas observaram à socapa o pobre homem, enquanto este batia furiosamente na cabeça, grunhindo e resfolegando calçada abaixo. Esperaram constrangidas até que o louco desaparecesse de vista e só então recolheram silenciosamente aos lençóis ainda mornos.
Decorria o Outono de 1888, e toda a cidade vivia atemorizada pelos hediondos crimes de um homem misterioso apenas conhecido por Jack. Todas as manhãs, os periódicos anunciavam os progressos da polícia na investigação do caso, as descrições confusas de hipotéticas testemunhas oculares, as opiniões dos supostos peritos A, B e C, que apontavam o dedo a indivíduo X, Y ou Z. Contudo, sempre que Jack matava mais alguém ou emitia outra das suas desconcertantes missivas, a City of London Police via-se forçada a admitir que o assassino estava a levar a melhor.
Para se percorrerem as ruas de Londres a altas horas da madrugada, era necessário estar-se louco ou bêbedo. Ou ambos, como poderiam julgar as pessoas que viram William Morris naquela noite. Muitas talvez pensassem que este fosse o Estripador em pessoa. Contudo, não conseguiram discernir o suficiente para construir uma denúncia eficaz. A sua figura encurvada podia corresponder a qualquer estatura, e as faces picadas pelos espinhos dos arbustos encontravam-se encobertas pelos longos cabelos negros completamente desgrenhados.
William Morris era um zé-ninguém. Um pobre, desafortunado diabo, perdido no vazar e encher da maré da vida. Sem família, sem amigos. Sem ninguém com quem pudesse partilhar a sua solidão. Desesperançado, esbanjava integralmente o seu arduamente adquirido dinheiro em incursões às tavernas e estalagens da capital, enchendo-se de bebida até tombar para o lado. Porém, estas sessões de copos eram geralmente interrompidas pelos donos dos estabelecimentos, que o expulsavam ao saber que Will vinha de bolsos quase vazios. Isto depois de lhe aplicarem uma violentíssima tareia como correctivo, é claro.
Sempre que tal acontecia, William abandonava a cidade e passava a noite nos bosques e nas matas das redondezas, demasiado ébrio para se preocupar com os potenciais perigos ocultos pelo pesado manto de escuridão.
Porém, naquela madrugada, William estava mais bêbedo que de costume, e havia perdido completamente o fraco sentido de orientação que possuía. Extremamente barulhento e desajeitado, percorreu as ruas da cidade até mais não poder, caindo no chão para dormitar aqui e ali. Acordando atordoado e assustado pelos pesadelos alucinatórios que o álcool lhe transmitia, fugia então espavorido dos monstros e das aparições que o perseguiam, ficando cada vez mais irremediavelmente perdido.
William acordou finalmente na manhã seguinte ao soar das onze, enroscado atrás de uma pilha de entulho, num beco estreito entre duas casas de tijolo encardido. Esfregou os olhos com as mãos sujas e feridas e levantou-se lentamente, sentindo-se ainda zonzo após a anterior noite de bebedeira.
Baixou o olhar ao sacudir o pó da sua roupa andrajosa, e noticiou que esta estava coberta por enormes manchas de sangue ressequido. Horrorizado, esfregou furiosamente os seus braços, também eles manchados pelo líquido escarlate. Deixou-se então cair de joelhos, debruçando-se sobre uma poça de água que jazia cintilante no pavimento. A sua cara, suja e levemente arranhada, não podia justificar a quantidade de sangue que a cobria.
Em desespero, William esfregou e arranhou freneticamente as faces, gemendo de agonia. Infelizmente, não era a primeira vez que tal acontecia. William sabia que não era seu o sangue que o manchava. Sabia que voltara a matar. E sabia também que não havia nada que pudesse fazer para o evitar.
Usando a água das chuvas que residia nas poças espalhadas pelo chão, William lavou-se o melhor que pode. Depois, despiu as peças de roupa mais manchadas de sangue, enterrando-as no meio do lixo que se acumulava pelo beco. Arriscou então abandonar o seu esconderijo e procurou sair da cidade o mais rapidamente possível. De tão atenta que a polícia estava, não tardaria a soar o alarme, de forma a que era imperativo fugir imediatamente e para longe, talvez para o norte.
Porém, Will Morris não fazia a mínima ideia de qual a orientação a seguir. Não conhecia a parte de Londres a onde fora parar, de forma que errou por ruas estranhas, acabando muitas vezes por andar em círculos. Receava aproximar-se das pessoas para lhes inquirir sobre que direcções tomar. Estaria condenado se o descobrissem.
A tarde passou de forma rápida e a noite iniciou gradualmente a sua descida sobre a cidade. Frustrado e faminto, Morris deixou-se cair à sombra de um muro, encostando o corpo dorido à pedra fria e húmida. Apesar de já se encontrar numa área que lhe era relativamente familiar, a fatiga não o permitia prosseguir.
Deixou-se ficar a mirar o céu pouco nublado. Impelidas por uma aragem gelada, nuvens desfiadas passeavam vagarosamente ante a Lua, ocultando parcialmente a face cheia e luminosa do astro. Abraçando o seu próprio corpo e aproximando as pernas do torso, William estremeceu de frio e amaldiçoou o relento que começava a cair.
Observou ao cimo da rua o lampianista que acendia um a um os postes de iluminação a gás. Quando passou por William não lhe dirigiu qualquer palavra de cortesia e acelerou o passo até aos candeeiros mais abaixo. Will Morris murmurou uma praga, mas no fundo invejou-o. Talvez depois de acabar o seu trabalho tivesse uma casa acolhedora à qual regressar, talvez uma família com a qual pudesse apreciar o resto do serão, aconchegado ao calor da lareira.
Ele não. Estava condenado a não ter uma vida normal. Vivia procurando esquecer as noites de sofrimento, fugindo da realidade que o atormentava.
Morris teria de encontrar imediatamente um lugar onde se fechar, ou acabaria por perecer à sua vontade insaciável por sangue. Pensou que talvez fosse melhor que o capturassem; ou que simplesmente permanecesse ali, deixando que o frio nocturno lhe extinguisse a chama. Não o fez. Podiam não o apanhar; podia não morrer. Contrafeito, levantou-se para procurar um local para o resto da noite.
À medida que a noite se adensava, William começou a sentir os seus impulsos animalescos apoderarem-se de si. Imagens de violência entrecortavam sucessivamente os seus pensamentos. Desejava o sangue das suas presas com cada vez mais ardor. Começava a ouvir roncos, silvos e rugidos, que interpretava como sendo ordens incitando-o a matar. Por tudo isto bebia em exagero, para que estas emoções passassem sem nota.
Correndo e gritando num estado selvagem, William Morris sentia-se cada vez mais desesperado por não encontrar refúgio. Não para se proteger a si, mas para proteger os outros. Rituais sangrentos toldavam-lhe completamente o que agora via. Não tardaria muito para que perdesse a consciência.
Pareceu-lhe então escutar alguém que se aproximava. Esforçando-se por apelar ao pouco de si que ainda subsistia, tomou a direcção oposta. Mas não resistiu em olhar para trás. Pareceu-lhe um jovem polícia descendo a rua. Talvez o prendesse e fechasse numa cela escura. Deu nova meia volta e dirigiu-se para ele. Ao fazê-lo, estatelou-se no solo. Não se importou e continuou, gatinhando velozmente. Quando se encontrava a um escasso metro do homem, quis atirar-se ao chão. Não conseguiu. Em vez disso lançou-se num salto temível e rasgou de um só golpe a garganta do pobre indivíduo.
Finalmente: sangue fresco. Fazia meses que não comia nada de jeito, impedido de caçar pelo estupor alcoólico em que geralmente mergulhava. Por quantas vezes sobrevivera de ratos ou coelhos ou decadentes cães vadios como o da noite anterior! Desta feita agradava-lhe o que apanhara: não por a presa ser humana, mas por ser de maior porte. Arrastou o cadáver para fora da estrada e afundou os dentes afiados na carne tenra do homem. Em poucos minutos teria a sua fome saciada.
Terminada a refeição, deixou o cadáver mutilado para trás e começou então a dirigir-se para fora da cidade, correndo o mais depressa que podia. Em breve encontrava-se em campo aberto, nas imediações de Londres, longe de todas as pessoas. Ouvindo cães ladrar à distância, sentiu-se tentado a replicar. Subiu uma pequena elevação coberta de erva e emitiu um profundo e prolongado uivo, rasgando o silêncio nocturno. Ao longe, os cães calaram-se momentaneamente em apreensão, recomeçando depois a latir e ganir com maior intensidade.
De barriga cheia e exausto de toda a actividade, Will Morris adentrou-se num pequeno bosque das proximidades e enroscou-se na base de uma árvore, pronto para uma noite de merecido sono. Embalado pela canção estridente dos grilos, sonhou com belos animais rechonchudos: galinhas e ovelhas, um ou outro porquito. Estava decidido, amanhã procuraria um belo leitão anafado onde fincar o dente.
William despertou na madrugada seguinte, baralhado e aturdido. Não se lembrava como havia conseguido sair de Londres, mas estava contente por tê-lo feito. No meio do mato, as chances de magoar alguém seriam menores. No entanto, William estava preparado para aceitar o que quer que tivesse sucedido na noite anterior.
A pouco e pouco, baixou o olhar para a sua roupa rasgada e gemeu de agonia. A suspeita confirmava-se: os seus braços e peito encontravam-se cobertos por largas nódoas de sangue seco. Lembrou-se da última visão racional que conseguira ter. “Pobre homem,” pensou. Mas não sentiu pena ou remorso. Apenas dor.
Desejou arduamente que fosse um dia o seu próprio sangue a ser derramado. Pensou que esta seria a única forma de colocar um termo à vida de pesadelo à qual fora condenado. E foi meditando na triste sina da sua existência que deixou o dia passar. À medida que o Sol navegava pelo céu, este foi-se enchendo de nuvens escuras. Por certo, iria chover naquela noite. Sentia a humidade no ar.
Era já tarde avançada, quase noite, quando noticiou um conjunto de vozes perto do local onde se encontrava. Tomado pela expectativa não ousou sequer respirar, e estacou escutando o que diziam. Eram caçadores. Por entre o ruído que faziam ao moverem-se pela vegetação, ouviu-os falar dos ataques de um lobo nos subúrbios de Londres. Estavam aqui para lhe dar caça, com certeza.
Respirando baixinho, viu um grupo de três homens cruzando a vereda quase à sua frente. À medida que observava a ponta das suas espingardas por cima da vegetação, rezou para que não o encontrassem. Por momentos não achou tão agradável a perspectiva da sua própria morte. Assim, aguardou em silêncio até que desaparecessem de vista.
Estava agora inquieto. A noite voltava a cair, e se não fizesse algo, William acabaria por matar novamente. A cidade não estava assim tão longe, e a ideia de voltar a alimentar-se de carne humana apertou-lhe o coração. Sendo assim, procurou afastar-se o mais que lhe foi possível, correndo pelo bosque na direcção oposta antes que perdesse o controlo sobre as suas acções.
Ia a noite envelhecendo lentamente, e William começou a sentir os impulsos selvagens que o instigavam a procurar uma presa. Rosnou. Apetecia-lhe algo mais substancial. Depois da refeição da noite anterior recusava-se a voltar aos pequenos animais que conseguisse achar no mato. A meio destes pensamentos sangrentos, William “acordou” e soltou um grito de desespero. Porém, cansado, deixou que o animal tomasse as rédeas da sua vontade.
Ouviu vozes novamente. Vozes apressadas, exaltadas. Vozes que reconhecia. A algumas dezenas de metros, luzes de candeias bruxuleavam no bosque escuro. Um clarão. Um estrondo. Outro estrondo. Assustado, fugiu noutra direcção. Um terceiro estrondo ecoou na noite. Soltou então um ganido quando um toque escaldante lhe dilacerou a carne.
Ignorando o que pudesse estar a acontecer, William atirou-se para uma zona mais densa do bosque. Aí permaneceu quieto, arfando em silêncio. As vozes seguiram-no, resmungando coisas que não compreendia. E ali ficaram, procurando-o durante mais algum tempo.
“Tens a certeza que lhe acertaste, Giles? Olha que a noite está cerrada…;”
“Tenho,” retorquiu outra voz. “Não vês o rasto de sangue? Olha!”
“Então não irá longe. Pelo menos aprendeu a lição.”
Antes de abandonarem o bosque, dispararam uns quantos tiros para o meio da vegetação, em jeito de último aviso, caso o animal não estivesse bem morto.
“Viste o tamanho do sacana?”, perguntou a terceira voz à medida que se afastavam, deixando William Morris ao cuidado da solidão.
Escondido no meio de arbustos espinhosos, William sangrava abundantemente da ferida infligida no seu braço direito. Começou então a lambê-la, procurando limpá-la o melhor que podia, e foi nessa altura que se apercebeu do sabor da sua carne. Deslizou os lábios ávidos de alimento fresco pela ferida, sorvendo o seu próprio sangue com relativo prazer.
Resistindo à dor, abriu a boca e afundou os dentes nos músculos palpitantes do seu braço, arrancando um generoso naco de carne. Sem pensar duas vezes, engoliu-a de um trago. A nova ferida ardia exposta ao ar frio da noite. Mas isso não o deteve. Num gesto rápido voltou a trincar o braço, desta feita quase até ao osso. Soltou um grito de dor, mas manteve o pedaço de carne preso entre os caninos aguçados, não o deixando cair.
A pouco e pouco, esfacelou completamente o próprio braço, ingerindo sofregamente cada pedaço que arrancava. Eram raras as vezes em que comia tão bem. Se ao menos a caça pudesse ser assim tão proveitosa todas as noites.
A dor não importava; ao menos morria de barriga cheia.
One thought on “William Morris”
Segundo o DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA de Francisco Torrinha, licantropia define-se como "estado de alienação, que leva o doente a julgar-se transformado em lobo". Tal psicopatia é bastante rara, mas existem casos clínicos que comprovam a sua assustadora realidade. Talvez seja destas sementes de verdade que tenha nascido toda a superstição relativa ao temível e cruel Lobisomem. William Morris é um desses casos. Até as suas iniciais — ” W. M.” — parecem prenunciar a maldição que se abatera sobre ele; iniciais essas que remetem à s palavras Inglesas wolf man.
William fora abandonado pela família quando os seus comportamentos animalescos começaram a despontar, era ainda uma criança nos primeiros passos da adolescência. A princípio, William identificava-se com o cão da família (mas de uma maneira pouco divertida). Contudo, depressa aprendeu sobre os lobos e o mito do lobisomem, que entretanto se recontava em sussurros por entre os habitantes da comunidade. Foi uma questão de tempo até o rumor se espalhar de que o infante se poderia transmutar inesperadamente numa qualquer horrível e sanguinária criatura. Tais conversas ouvidas às escondidas instilaram estranhos medos no sub-consciente de William e acabaram degradando a sua condição mental. Foi quando certos animais de criação começaram a desaparecer em circunstâncias misteriosas que os murmúrios da população evoluiram para um crescendo de protestos. Com a ignorância e a superstição do seu lado, todos sabiam para onde apontar as culpas. Então, e em segredo, acordaram sobre a melhor coisa a fazer. Seguindo minuciosamente as lendas que conheciam, construíram ao longo de vá¡rias semanas uma dispendiosa lâmina de prata com a qual planeavam dilacerar o coração do jovem. A família, apercebendo-se do hediondo plano, levou a criança para longe e abandonou-a ao seu destino. A solidão e o desespero fizeram o resto. No conto é difícil destrinçar a fronteira entre o mito e a realidade. William Morris pode tanto ser um "verdadeiro" lobisomem, como um infeliz doente mental que todas as noites se julga transformado em tal criatura. Não observamos uma metamorfose física através da qual possamos dizer «William Morris é um monstro», note-se. Pelo menos tive o cuidado de não me entusiasmar pelo fenómeno sobrenatural.
O enredo de WILLIAM MORRIS desenrola-se em 1888 na sempre nevoenta Londres vitoriana, durante a época em que o temível (e também ele quase mítico) Jack o Estripador lançou a sua cortina de terror sobre a cidade. William Morris não é Jack, apesar de dar a entender a certa altura que o planeio explicar assim. Apenas resolvi largar a personagem principal naquela época para limitar as suas acções enquanto "humano", já que todos os polícias da cidade andavam de orelha arrebitada por causa do assassino. Foi ainda uma boa forma de manter as ruas quase desertas durante a noite, quando a faceta lupina de William saía para caçar. E após algumas peripércias, a maldição de William Morris termina com a sua própria morte. É de certo modo uma referência à trilogia (?) DOPPELGÄNGER, em que uma personalidade dual — que neste caso é a do par homem-lobo — conduz quase inevitavelmente à auto-destruição da personagem. Porém, encontramos desta vez a consciência do Homem versus a irracionalidade do Animal. Mas qual delas carrega a intenção do suicídio? Uma? A outra? A manipulação do Homem traíndo os instintos do Animal, talvez? Uma vontade partilhada pelas duas partes? E seria mesmo uma vontade, ou uma consequência dessa perigosa fusão?