Haverá poucos temas tão caros à ficção científica como o tema da Inteligência Artificial. As abordagens diferem, mas praticamente todas tomam como ponto de partida a criação humana de uma inteligência computorizada que, assumindo consciência de si mesma e transcendendo em larga medida as capacidades cognitivas dos seus criadores, provoque alterações profundas na Humanidade, ao ponto de a tornar irreconhecível para quem tenha vivido antes do advento dessa inteligência. De forma muito resumida, esta é a definição de singularidade, termo cunhado por John von Neumann ainda nos anos 50 e popularizado mais tarde por Vernor Vinge - e quando às consequências desse acontecimento que muitos crêem inevitável, a ficção científica tem-se esforçado por imaginar várias possibilidades para esse mundo pós-singularidade. No seu legado, o género tem inteligências artificiais inescrutáveis, benévolas, confusas e malévolas - ao ponto de se tornarem numa ameaça para a Humanidade, e de assumirem o papel de arautos da sua extinção. Na sua primeira experiência como realizador, Wally Pfister, director de fotografia premiado que se notabilizou pelo seu trabalho com Christopher Nolan, optou por explorar os territórios vastos e difusos da singularidade - mas alterou a designação para Transcendence.
Transcendence recupera o tema da Singularidade para um futuro aparente e indistinto (nada, para todos os efeitos, distingue o tempo narrativo do nosso tempo real) no qual a investigação na área da Inteligência Artificial se encontra a avançar a bom ritmo. Um dos principais rostos dessa investigação é Will Caster (Johnny Depp), um cientista tão conceituado como popular, por mais que procure evitar essa popularidade (sem grande sucesso, a avaliar pela palestra que vemos, pelos autógrafos que estudantes lhe pedem, e pela entrevista à revista Wired).
De natureza essencialmente discreta e com um pequeno toque de paranóia, Caster é, de certa forma, um cientista puro: o seu único propósito é investigar pela pura descoberta do conhecimento e das possibilidades que a tecnologia encerra, sem quaisquer considerações éticas ou de aplicabilidade prática do seu trabalho, e sem quaisquer desejos de mudar o mundo. Tais sonhos pertencem à sua mulher, Evelyn (Rebecca Hall), mais extrovertida e social; quanto às questões éticas, estas ficam a cargo de Max Waters (Paul Bettany), um dos amigos mais próximos do casal.
Mas a investigação que Caster está a desenvolver para a criação de um computador inteligente e auto-consciente - e que já alcançou algum sucesso no projecto PINN (acrónimo para Physically Independent Neural Network) - não é vista com bons olhos por todos os sectores da sociedade. Um grupo intitulado RIFT (Revolutionary Independence From Technology) é especialmente ruidoso na sua oposição à investigação no ramo da IA - e leva a cabo uma série de ataques terroristas coordenados que culminam na destruição de vários laboratórios, na morte de dezenas de cientistas em instituições privadas e governamentais, e num ataque a Will no qual este sofre um ferimento letal.
Perante a morte inevitável do seu marido, Evelyn decide arriscar um procedimento improvável, apenas testado com sucesso moderado num macaco: fazer o upload da consciência de Will para os processadores quânticos do PINN, dando-lhe uma nova vida cibernética quando o seu corpo falhar. Apesar dos seus dilemas éticos, Max ajuda-a nesse projecto - e é num misto de espanto e de horror que vê Will renascer online, na posse de todas as suas memórias e com uma capacidade cognitiva inconcebível. Mas será este novo Will a mesma pessoa que era antes, na sua manifestação física original? E uma vez ligado à Internet e com acesso virtualmente ilimitado a todos os sistemas online, o que irá fazer?
A resposta a esta pergunta, dada nas cenas finais do filme, será talvez o ponto mais positivo de Transcendence (apesar do plot hole aparente que envolve uma "Chekov's Gun" bastante imaginativa), a par da competência estética e visual de Pfister. Todo o filme acaba por ser transportado não pela interpretação do seu actor principal, Johnny Depp (quase tão inexpressivo aqui como Keanu Reeves, e sem o ar de alheamento perpétuo deste), mas por Rebecca Hall, num desempenho emotivo e verosímil. O restante elenco, de qualidades inegáveis, surge aqui francamente subaproveitado - Paul Bettany, Kate Mara, Cillian Murphy e Morgan Freeman poderiam ter dado muito mais ao filme, se o argumento o tivesse exigido.
E este surge minado por alguma inconsistência narrativa, por uma série de problemas lógicos que nunca resolve (como se conseguiu levar Brightwood para aquele estado sem chamar a atenção de ninguém? E que raio de plot point é o da energia no final?), e por uma indecisão aparente em relação à mensagem que quer transmitir e à história que quer contar. É inegável que Transcendence tem pertinência nos dias que correm, quando as sociedades ocidentais estão cada vez mais dependentes dos seus gadgets tecnológicos e da sua ligação constante à rede - abdicando de noções de privacidade e de segurança por algo difuso que boa parte das pessoas não entende como funciona, e quando o virtual e o online parece invadir todos os domínios das nossas vidas.
É pena que nunca se entenda muito bem qual é o ângulo que a história pretende explorar: se a pertinência dos argumentos tecnófobos ou dos entusiastas da singularidade, se das questões de privacidade que as tecnologias modernas suscitam, e sobre as quais a maior parte das pessoas não se dá ao trabalho de reflectir, se da natureza da consciência, se da eterna oposição entre humanidade e inteligência artificial, se da fábula moral futurista ao estilo de Dr. Frankenstein da era da Web 2.0. Aparentemente, Wally Pfister e Jack Paglen também não se conseguiram decidir - e, por via das dúvidas, acabaram por incluir tudo. O resultado, ainda que se revele interessante e, a espaços, capaz de suscitar uma ou outra reflexão, acaba por nunca se elevar às alturas que poderia alcançar.
E a isso não é alheio o facto de todos estes temas que Transcendence mistura já terem todos sido tratados na ficção científica moderna, e quase sempre de forma mais completa, coerente, pertinente e intrigante. Inteligências artificiais gone rogue são centrais a filmes como 2001: A Space Odyssey e Terminator (e muitos outros, claro); já a dúvida sobre a condição humana perante o artificial surgem bem exploradas em Blade Runner e Ghost in the Shell - sendo talvez o filme de Mamoru Oshii a melhor e mais relevante obra sobre o tema. Isto sem esquecer, claro, o subtexto filosófico e religioso (aqui tão martelado por Pfister e Paglen) de The Matrix ou da reinvenção contemporânea de Battlestar Galactica. E quanto ao relacionamento entre Homem e Máquina... ainda há pouco tempo vimos Her, de Spike Jonze, a extrapolar o tema para as relações amorosas, e a ser distinguido com um Óscar da Academia para Melhor Argumento original no processo. Note-se que nem saímos da ficção científica audiovisual - muito ainda se poderia dizer a propósito de obras de William Gibson, Greg Bear, Vernor Vinge, Dan Simmons e muitos outros autores.
Enfim, ninguém poderá retirar a Transcendence o mérito de ter ambição e de querer explorar a partir de vários ângulos diferentes uma temática fascinante, complexa e, acima de tudo, pertinente pela sua actualidade. As ideias estão de facto lá - é uma pena que a execução da premissa acabe por ficar muito aquém do seu potencial, minada por uma narrativa débil e inconsistente. Pfister e Paglen parecem querer incorporar conceitos díspares, que funcionariam talvez em filmes diferentes - o cautionary tale, o subtexto religioso, a definição de humanidade, o debate ético, o jogo de antíteses entre real e virtual, natural e sintético, razão e emoção -, mas que, juntos na mesma narrativa, acabam por gerar mais ruído do que qualquer outra coisa. É um bom esforço, com uma estética curiosa e algumas noções interessantes, mas podia ser muito mais do que isso. 06/10
Transcendence (2014)
Realização de Wally Pfister
Argumento de Jack Paglen
Com Johnny Depp, Rebecca Hall, Paul Bettany, Morgan Freeman, Cillian Murphy, Kate Mara e Clifton Collins Jr.
119 minutos