Realizado, produzido, editado e com argumento do realizador mexicano Alfonso Cuarón, Gravity é um filme de Hollywood produzido praticamente todo no Reino Unido — tal como 2001: Odisseia no Espaço. Talvez estranhamente por isso, embora separados 45 anos no tempo, ambos os filmes tragam o universo da hard science fiction para o grande écrã; ambos os realizadores também apostaram na exactidão científica que é uma das marcas da hard SF.
No entanto, Cuarón não é Kubrick, e seria injusta a comparação (que o próprio Cuarón rejeita categoricamente). 2001: Odisseia no Espaço é um filme complexo, com uma mensagem profunda e complexa de passar, permitindo várias leituras, cheia de significados secretos, e de perguntas não respondidas, que o espectador terá de responder por si próprio — talvez daí o fascínio daquele que é considerado o melhor filme de hard science fiction de sempre.
Gravity, em compensação, tem um argumento simples e uma mensagem simples: é impossível a vida no espaço. É demasiado perigosa para qualquer espécie nascida no planeta Terra. No entanto, nós humanos conseguimos fazer do espaço a nossa casa, porque somos teimosos — mas sofremos imenso para lá chegar. O mínimo momento de desatenção torna-se numa catástrofe; mas desistir só porque tudo no espaço é demasiado difícil não faz parte do espírito da espécie humana.
Visualmente, Gravity tem um impacto absolutamente fascinante, que não fica atrás de 2001 — mas, claro, a tecnologia avançou nos últimos 45 anos a um ponto que Kubrick não podia imaginar (tal como imaginou iPads e videofones em 1968!). Gravity levou 4 anos e meio a produzir, e a maior parte do filme foi… fazer três filmes. Primeiro, um de animação, com todo o cenário, que levou dois anos a fazer. Depois, Sandra Bullock, que faz o papel principal — Drª Ryan Stone, uma cientista-astronauta, alegada especialista de missão — passou anos a treinar uma complexa coreografia, extremamente difícil, que foi filmada separadamente, usando robots para a erguer no ar e posicioná-la precisamente nos locais exactos. Finalmente, a equipa de animadores pegou nas duas coisas — a animação inicial do cenário, e as filmagens de Sandra Bullock — e combinou ambas num segundo filme de animação com todos os ajustes finais. Portanto, Gravity não é um filme: são três. Para o público, claro, o que passa é uma sequência magnífica de cortar a respiração, à medida que acidente se sucede a acidente, e que é impossível ao espectador deixar passar sem suster a respiração e sentir o pulso acelerar. Estamos a cada instante a ver tudo o que vai correr mal, mas secretamente esperamos que o realizador, ao menos, deixe a personagem principal viva até ao fim. Mas o suspense é mantido até aos últimos segundos.
Contar a história tira um pouco da surpresa do filme, mas vale a pena referir que todo o enredo gira em torno da sucessão de acidentes que surgem no espaço, e em que tudo o que pode correr mal, corre. Para o apreciador de thrillers, significam 90 minutos sem respirar. Para o apreciador de blockbusters, fica um rasto de destruição maciço de todo o tipo de naves espaciais que por aí orbitam o planeta Terra. Para o apreciador ocasional de ficção científica, fica a sensação de que o filme é um digno sucessor de 2001 e de Apollo 13.
O apreciador de hard science fiction, mais exigente, vai sentir-se enganado. É que Cuarón é muito hábil em combinar realidade e ficção, e quem tenha trazido o bloco-notas para apontar as falhas do filme vai provavelmente apontar as falhas erradas e não encontrar as falhas reais, porque são subtis — e que Cuarón não tem o menor problema em publicamente afirmar que o filme não é 100% cientificamente correcto. Mas é quase 99%. E os restantes 1% são enganadores.
A primeira falha é uma consequência do tempo que o filme levou a produzir: a cena começa num Space Shuttle, cujo programa foi desmantelado em 2011; mas Cuarón, em 2009, não podia saber isso. Em simultâneo, mostra-se o telescópio orbital Hubble a levar mais um upgrade — sabendo-se que a NASA desistiu das missões de upgrade do mesmo em 2009, provavelmente pouco depois de Cuarón ter começado o trabalho. Azar do caraças! Em compensação, Cuarón apresenta uma estação espacial chinesa, Tiangong, mas que parece bastante maior do que a Tiangong existente (lançada em 2011) e que provavelmente seria a Tiangong 3, a ser lançada entre 2020-2022. Ou seja: embora a data do filme não seja explícita (ao contrário de 2001!), poder-se-ia esperar que Gravity fosse um filme passado no futuro próximo, talvez por volta de 2025 (já que a estação espacial internacional deve ser abandonada em 2028). O azar de Cuarón foi que no início de 2009 não poderia saber que não iriam haver nem Space Shuttles, nem missões de manutenção do Hubble nessa altura!
A segunda falha é muito mais óbvia. Grande parte do enredo parte do princípio que o Hubble, a estação espacial internacional e a estação espacial chinesa estejam no mesmo plano de órbita, e que estejam em linha de visão umas das outras — assim como a totalidade dos satélites de telecomunicações. Na realidade, nenhuma destas assumpções é verdadeira. É referido, por exemplo, que a estação espacial internacional está «meramente» a 160km de distância do Hubble. Na realidade, estão em órbitas e inclinações diferentes — embora a diferença de órbitas seja até, em média, aproximadamente esses 160 km, a distância entre os dois objectos é de milhares de quilómetros. O mesmo se passa quanto à posição actual da Tiangong 1 (não se sabe onde irão ser colocadas as Tiangong 2 e 3). Ou seja: o ponto essencial do enredo que se baseia na possibilidade de um astronauta poder «passear» em EVA do Hubble para a ISS para a Tiangong é completamente absurdo.
Há outras falhas menores, mas que são detectáveis. Uma tem a ver com a forma como as lágrimas se desprendem dos olhos em microgravidade. A outra tem a ver com o aspecto de um astronauta cujo capacete seja perfurado por um micro-meteorito. Também se vêem objectos ainda a flutuar na cápsula de retorno à Terra durante a manobra de re-entrada, o que não é possível.
Depois existem algumas falhas de enredo. A personagem de Sandra Bullock é alegadamente uma médica, aparentemente especialista em imagiologia médica, que obteve financiamento para adaptar um equipamento, em fase de protótipo, para a exploração espacial no Hubble. O equipamento está envolvido em algum secretismo porque a Drª Stone não explica em pormenor a que se destina; isto é estranho, porque as missões da NASA não combinam operações de rotina (um upgrade de software feito ao Hubble, que é a outra operação que nos é mostrada) com operações secretas. E isto pode ser estranho e rebuscado — porque é que mandariam uma médica para o espaço, para ligar um equipamento ao Hubble, quando um engenheiro seria a escolha óbvia? Poder-se-ia imaginar que o equipamento fosse tão complexo de operar que só a sua inventora o conseguisse montar em órbita… mas nada disto é explicado. Parece, pois, que parte do argumento foi suprimido na mesa de montagem, e temos que aceitar esta explicação confusa e pouco convincente. Mais grave é a «promoção» de uma cientista a especialista de missão com apenas seis meses de treino, à qual inclusive foi dado treino de pilotagem de naves americanas e russas (mesmo que a Drª Stone admitisse que tinha falhado todos os testes nos simuladores). Uma cientista com treino de astronauta nem sequer faria missões fora da nave, por mais «delicada» que fosse a missão, ou por mais «secreta» que esta fosse; os passeios espaciais são feitos por astronautas treinados para o efeito, que também são engenheiros e têm formação científica, sendo perfeitamente capazes de executar todas as missões delicadas de montagem de equipamento, secreto ou não. E, finalmente, mesmo que não tenham um jetpack sofisticado, qualquer astronauta em EVA vai ter pelo menos um pequeno sistema de emergência acoplado ao fato caso se rompa a corda que o prende à nave (o que acontece várias vezes no filme) — não terá grande autonomia nem grande capacidade de manobra, mas não deixará o astronauta completamente perdido.
Depois, apesar do cuidado em replicar os fatos (tanto de astronautas como de cosmonautas) externos, o realizador «esquece-se» de que estes também têm um fato interior. Claro que, para o filme, o realizador quer mostrar a Sandra Bullock a sair de um fato externo com a maior das naturalidades, ficando em top e shorts, na melhor forma física possível. Na realidade, estaria a transpirar dentro do fato interior e a usar fraldas.
Estas são as falhas fundamentais.
O resto são coisas que andaram em discussão por essa ‘net fora mas que… na realidade até são possíveis. «Esticam» a realidade, mas não estão totalmente erradas. Por exemplo, logo a início é-nos revelado que ocorreu um acidente grave quando um míssil russo abateu um satélite-espião russo — os destroços do satélite embateram noutros satélites próximos, e isto desencadeou uma reacção em cadeia, deitando abaixo toda a rede de telecomunicações e GPS. Ora isto não está totalmente errado — existe, de facto, essa possibilidade, conhecida como o síndroma de Kessler, que foi inicialmente descurada como sendo demasiado irrealista. Na realidade, os chineses, em 2007, efectuaram um abatimento de satélite com mísseis (os EUA fizeram o mesmo em 2008, depois de uma tentativa falhada em 1985); e o síndroma de Kessler ocorreu mesmo em 2007 e 2009. Os detritos do satélite chinês abatido fizeram «razias» à ISS em 2011 e 2012. Ou seja: apesar de muita gente pensar que este elemento do enredo é pura ficção, na realidade não é. É razoavelmente plausível, apenas muito improvável. A «falha» está em admitir que um evento destes pudesse destruir toda a rede de telecomunicações e GPS. É que embora os satélites do GPS estejam em órbitas baixas, os principais satélites de telecomunicações (não todos!) estão em órbitas geoestacionárias… a 35.000 km acima do nível do mar. Ou seja, muito, mas mesmo muito mais acima do GPS, do Hubble, da ISS, da estação espacial chinesa, etc. A certa altura é feito o comentário irónico, «metade dos americanos vão ficar sem Facebook» o que é um exagero: muito pouca comunicação Internet é feita via satélite, excepto para zonas extremamente remotas, e os satélites de telecomunicações geoestacionários não seriam afectados por algo que afectasse o Hubble e a ISS. Ou seja: o silêncio rádio que perdura ao longo do filme seria, na realidade, impossível.
Há também algo que irrita os espectadores mais «científicos»: em algumas cenas, os detritos dos satélites são vistos como uma espécie de chuva densa de meteoritos, arrasando tudo à sua passagem, e a personagem de George Clooney diz coisas como «vêm aí os detritos!». Apesar da espectacularidade dos efeitos, há quem fique céptico quanto à representação dos mesmos (especialmente a sua velocidade). Na realidade, esta está mais correcta do que se possa pensar.
Talvez uma das cenas que requer um esforço gigantesco de credibilidade é quando a personagem de Sandra Bullock, aproximando-se numa Soyuz da estação chinesa — que está a perder altitude e a re-entrar na atmosfera — efectua uma decompressão explosiva (basicamente abre a escotilha da Soyuz sem tirar o ar previamente), aproveitando assim o impulso para se aproximar da Tiangong, usando, para ajustar a trajectória de aproximação… um extintor de incêndio comum, obtido a bordo da ISS. Bom. Nunca estive na ISS, mas sei que os russos são enormes improvisadores (isto contado por amigos meus que trabalham na indústria aeroespacial e que regularmente trocam histórias incríveis com os cosmonautas russos), por isso é possível que existam. No entanto, usar um extintor desta forma seria altamente implausível, especialmente por uma cientista com pouco treino. Duvido sequer que os cosmonautas russos alguma vez tenham treinado EVA usando um extintor! Ou seja, embora esta «manobra» não seja impossível, na realidade seria altamente improvável que alguém a conseguisse realizar.
Finalmente, para saltar de obstáculo em obstáculo, as luvas dos fatos exteriores parecem ser extraordinariamente flexíveis — mas na realidade não são. As «acrobacias» feitas pelas personagens no filme, apesar de estar fisicamente correctas (em termos de acção/reacção), dependem, no filme, muito da capacidade dos astronautas se poderem agarrar perfeitamente, coisa que (ainda) não acontece com as luvas actuais.
Claro que, para efeitos da acção e do enredo, está-se a assumir que a Drª Ryan Stone ou faz mesmo estas manobras todas com precisão, ou morre. Pode-se «suspender a credibilidade» dizendo que, entre morrer e fazer uma tentativa louca que tem pouca probabilidade de sucesso, especialmente por alguém sem treino, qualquer alternativa é melhor do que morrer. E as pessoas também têm sorte, e às vezes as coisas correm bem. Nas palavras de Terry Pratchett, million-to-one chances succeed nine times out of ten. O argumentista está apenas a contar a história de alguém que vai sobrevivendo a estas hipóteses todas…
E, finalmente, a sequência de desastres e catástrofes que se sucedem, uma após a outra, a cada segundo dos 90 minutos do filme, são, nas palavras de alguns astrofísicos e astronautas que comentaram o filme… altamente improváveis de sucederem em conjunto. Mas podem, efectivamente, acontecer isoladamente. Várias naves arderam em órbita. Space Shuttles embateram na ISS («mau estacionamento»). Detritos de satélites destruídos passaram pela ISS mesmo à tangente. Astronautas soltaram-se dos seus cabos. Naves ficaram sem combustível. Silêncio rádio prolongado é possível. E assim por diante. Mas que tudo isso (e muito mais!!) aconteça em 90 minutos é altamente improvável! Aqui vou citar o imortal P. G. Wodehouse, que utiliza a expressão «concatenação de circunstâncias» nos seus romances humorísticos, em que «tudo acontece» e que o resultado é hilariante, porque sabemos que a probabilidade de todas essas coisas acontecerem umas a seguir às outras é impossível! Mas Gravity é uma obra de ficção; explora, numa sequência de cenas, uma quantidade de coisas que podem correr mal, e aponta soluções para algumas delas que até são plausíveis. A ficção está em aceitar que possam, todas elas, ocorrer de seguida em tão curto espaço de tempo — e que uma cientista rookie, com pouco treino de astronauta, possa lidar com todas elas com tanta facilidade.
As partes que os astrofísicos e os astronautas gostaram mais, no entanto, foi a complexíssima simulação dos movimentos todos no espaço, porque nos parecem tão estranhos os movimentos em micro-gravidade sem qualquer atrito. No entanto, todos concordam que estas complexas acrobacias foram recriadas de forma realista, por mais estranhas que pareçam, e por mais que tenham sido criticadas. Também elogiaram o detalhe com que foram replicados os fatos e as naves. A minha companheira criticou a quantidade de lixo existente na ISS, mas qualquer vídeo do YouTube que mostre a ISS, especialmente as secções russas, revelam que a ISS é tudo menos uma nave limpinha e arrumadinha, pelo menos por dentro. Mesmo os críticos mais severos concordaram que o esforço de recriação realista foi muito mais longe do que seria de esperar e que, comparativamente, as falhas são muito poucas; tratando-se de acidentes ficcionados (ao contrário de Apollo 13 ou The Right Stuff) existiu alguma liberdade criativa, é certo, mas que não violou dramaticamente a ciência e a realidade. Como disse, o próprio realizador admite com humildade que o filme não é perfeito do ponto de vista científico, mas que o aproximou o mais que pôde.
Não se trata de uma obra-prima de perfeição. Nem sequer do ponto de vista puramente do cinema enquanto arte. O argumento é fraco e a mensagem demasiado simples. A realização é bastante boa — a mistura de planos entre a vastidão do espaço e o espaço pessoal, com uma visão subjectiva da perspectiva da personagem, torna o filme particularmente interessante e emotivo — mas não está o nível de um Kubrick. Gravity não será o «sucessor» de 2001, mas talvez faça parte da minúscula lista de filmes de hard science fiction que as distribuidoras de Hollywood ousaram lançar no circuito comercial. Só por isso, fará história.
Sandra Bullock aspira a ser nomeada para outro Óscar, mas não sei se a sua interpretação foi assim tão sublime como isso. E digo-o com relutância: como qualquer outro cromo informático, tenho um carinho especial pela Sandra, que nos brindou com The Net em 1995. Mas também foi a única actriz a vencer, simultaneamente, o Óscar de melhor actriz e o Razzie de pior actriz no mesmo ano (em The Blind Side e All About Steve, respectivamente, ambos de 2009). É proeza!
Fontes: Wikipedia, Time Science & Space