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Talvez seja seguro afirmar que a space opera está em franco ressurgimento na ficção científica contemporânea, regressando para o topo do género com o qual tantas vezes se confunde (ou é confundida, melhor dizendo). Na literatura, Ancillary Justice, de Ann Leckie, conquistou tanto a crítica como o público, tornado-se aos poucos numa força imparável nos prémios da ficção de género em 2014; ao mesmo tempo, séries como Expanse, de James S. A. Corey e Culture, de Iain M. Banks, gozam de uma popularidade invejável (com a primeira a ter até uma adaptação televisiva projectada, pelo SyFy Channel). Nos videojogos, e depois do sucesso avassalador de Mass Effect e do êxito de nicho de EVE Online, os próximos tempos parecem preparar-se para celebrar o regresso dos space sims, um género quase votado ao esquecimento nas últimas duas décadas, recuperado pelo crowdfunding em títulos tão arrojados como Star Citizen, Elite: Dangerous e No Man’s Sky. E no cinema, as mais clássicas space operas estão de volta, com Star Trek em alta após dois filmes bem sucedidos nas bilheteiras e com o hype em redor do próximo episódio de Star Wars e dos planos da Disney para a franchise a roçarem já o insuportável. Colocadas as coisas neste contexto, parecerá talvez segura a aposta da Marvel em Guardians of the Galaxy, adaptando para o grande ecrã a recente reimaginação de 2008 de um título mais antigo; mas a verdade é que reduzir o sucesso do filme às circunstâncias do género e do fandom acaba por ser um tanto ou quanto redutor.
De certa forma, acaba por ser essa opção pela ligeireza e pela diversão que acaba por elevar este Guardians of the Galaxy de James Gunn e de o tornar num filme imperdível, notável a praticamente todos os níveis. No tom ouvem-se os ecos das aventuras cinematográficas de outros tempos, bem ritmadas e repletas de gags e de situações impossíveis resolvidas com alguma improvisação e com muito humor – como vimos, deliciados, em clássicos da aventura como Indiana Jones, ou em clássicos da ficção científica como The Fifth Element (que, creio, está mais próximo de Guardians do que o inevitável Star Wars). Heróis e vilões encontram-se muito bem separados, mesmo quando os primeiros têm origens que são tudo menos nobres (os rogues, afinal, também são um clássico do género).
Estes ecos vintage, de outros tempos, surgem reforçados pela surpreende veia nostálgica do filme, muito bem ancorada na personagem de Peter Quill/Star-Lord (Chris Pratt num desempenho memorável, em simultâneo protagonista e comic relief). Há na sua nave, a Milano, toda uma série de memorabilia extraída dos anos 80 para a civilização galáctica do futuro (em contar, claro, com as inúmeras referências pop que faz ao longo do filme, em diálogos tão inspirados como divertidos). Com o artefacto mais importante a ser o seu walkman com a cassete Awesome Mix vol. 1, que serve de pretexto à espantosa banda sonora pop-rock de raízes punk, glam e blues (entre outras), onde figuram nomes como David Bowie, Blue Suede, Jackson 5, Marvin Gaye e The Runaways. Longe de ser um aspecto meramente complementar do filme, a banda sonora é responsável em larga medida pelos tais ecos vintage e por conferir a toda a trama uma energia muito própria, única na ficção científica contemporânea.
E depois temos as personagens, claro – com Guardians of the Galaxy a apresentar aquele que será talvez o melhor elenco de todo o Marvel Cinematic Universe. No que diz respeito aos protagonistas reais, a surpresa vai para o Drax de Dave Bautista, o wrestler profissional aqui tornado num inesquecível colosso deadpan de vocabulário elaborado. A Gamora de Zoe Saldana revela-se competente q.b., com uma excelente química com o resto da equipa – ainda que fique a sensação de que o guião não a deixou ir mais longe. Mas quem rouba o espectáculo, mais até do que Chris Pratt, são as duas personagens geradas por computador: Rocket e Groot, a quem Bradley Cooper e Vin Diesel emprestaram as respectivas vozes para construírem uma dupla memorável.
No entanto, perante uma equipa de heróis tão consistente e perante um conjunto notável de personagens secundárias (onde figuram nomes como John C. Reilly, Glenn Close e Michael Rooker, este numa versão espacial do seu Merle de The Walking Dead), será talvez impossível não reparar como um dos calcanhares de Aquiles do filme acaba por ser os vilões. Não por culpa dos actores, entenda-se: há em Karen Gillan, Lee Pace e Josh Brolin talento mais do que suficiente para muitos vilões em muitos filmes, e isso nota-se em alguns momentos. No entanto, o Thanos de Brolin aparece quase só de passagem (ainda que seja uma aparição relevante), e a Nebula de Gillan surge muito desaproveitada. Resta o Ronan the Accuser de Lee Pace, com uma motivação pouco sustentada e sem aquele carisma exagerado que talvez lhe permitisse erguer-se acima dos clichés da sua personagem (como acontece com o magnífico Zorg de Gary Oldman em The Fifth Element). O seu momento de glória naquele inesperado confronto com Star-Lord, quase no final do filme, não é suficiente para resgatar a personagem.
Já a outra fraqueza de Guardians of the Galaxy acaba por se revelar bem mais problemática do que os seus vilões. Por mais “fora do baralho” que seja, Guardians integra o Marvel Cinematic Universe – e isso nota-se mais do que seria talvez desejável para um filme que se revela tão refrescante em tantos momentos. Com toda a sua ligeireza e todo o seu humor, o filme nunca consegue sair do espartilho do franchising, sublinhado pelos ganchos evidentes à sequela (na prática, o filme é uma origin story de duas horas) e reforçado pela integração numa continuidade mais vasta, que emerge nas aparições de Thanos e do Collector (já referidos nas cenas pós-créditos de The Avengers e Thor 2: The Dark World, respectivamente) e que se manifesta de forma definitiva no MacGuffin que serve de pretexto a toda a trama: a Infinity Stone.
Em última análise, Guardians of the Galaxy acaba por ser mais revolucionário no contexto do Marvel Cinematic Universe do que na ficção científica em geral – com todo o encantamento do seu worldbuilding e todo o charme do seu tom retro, acaba por não ser mais do que uma engrenagem na máquina cinematográfica do universo partilhado da Marvel. Uma engrenagem glorificada, é certo, mas ainda assim uma engrenagem, um pequeno ponto de algo mais vasto e não o ponto de partida para algo novo e irresistível, capaz de se tornar numa força cultural como Star Wars conseguiu nos anos 70; e também por isso nunca será comparável ao clássico de George Lucas. No fundo, e mais do que introduzir personagens e plot points, serve para demonstrar que neste momento a Marvel consegue vender no grande ecrã até as suas propriedades intelectuais mais secundárias.
Ainda assim, o balanço que se retira de Guardians of the Galaxy é extremamente positivo. Pode não estar aqui a revolução de que a space opera cinematográfica talvez necessite, com um equivalente à sofisticação conceptual dos universos literários de Hyperion, Culture ou ao novíssimo Imperial Radch, mas há muito para apreciar na sua nostalgia vintage, na ligeireza que recupera de outros tempos e que tanta falta faz nestes tempos de distopia e grimdark, e no carisma bem humorado dos seus heróis. Com uma componente visual exemplar, uma banda sonora duradoura (até porque testada pelo tempo) e uma mão-cheia de personagens memoráveis, Guardians of the Galaxy é sem dúvida o grande blockbuster deste Verão – e se é uma pena que lhe falte autonomia para vôos mais altos, nem por isso deixa de ser um exemplo perfeito do mais puro, despretensioso e nostálgico entretenimento. 8.2/10
(nota: texto editado para corrigir uma gralha e dois disparates gramaticais)
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