Longe das dúvidas que se instalaram a propósito de outras nomeações noutras categorias, os quatro contos seleccionados para a shortlist de “Best Short Story” na edição de 2014 dos Prémios Hugo destacam-se pela sua qualidade global, muito acima da média, e pela diversidade nas origens dos seus autores. Lendo-os no seu conjunto, será talvez difícil não reparar na predominância de temas , passe a expressão, românticos – não há aqui uma exploração mais tradicional das convenções da fantasia ou da ficção científica, sendo estas relegadas para segundo plano perante a beleza das metáforas e o destaque dado às personagens, às suas personalidades, aos seus dramas e aos seus relacionamentos – com aqueles que amam, com as famílias, e até com estranhos. E, diga-se de passagem, não há mal nenhum nisso – sobretudo quando estes quatro talentosos autores apresentam contos deste calibre. Aqui ficam hoje em destaque:
Selkie Stories Are for Losers, de Sofia Samatar, foi publicado na
Strange Horizons a 7 de Janeiro de 2013. Samatar utiliza a selkie (uma criatura do folclore irlandês e escocês que assume a forma de uma foca na água, o seu elemento natural, e que despe a pele para vir a terra – podendo ser capturada se a pele for recolhida por alguém) para reflectir sobre os laços familiares, sobre o compromisso e sobre as oportunidades – as que se perdem por falta de atrevimento, e as que se aproveitam quando surge a única chance para tal. E fá-lo através de um curioso enquadramento narrativo, explorando a história da jovem protagonista e da sua colega de trabalho/amiga/amante (Mona) enquanto reflecte sobre o seu passado, sobre o significado das fábulas de
selkies – e sobre a ligação que o seu passado tem com estas histórias. Sofia Samatar tece a história com uma prosa superlativa, cuja simplicidade e verosimilhança esconde uma sofisticação assinalável, e que dá a cada momento uma carga emotiva extraordinária na conjugação. A todos os níveis,
Selkie Stories Are for Losers é um conto extraordinário – não surpreende que esteja nomeado para os prémios Hugo e Nébula, e que tenha chegado à
shortlist dos British Science Fiction Awards.
If You Were a Dinosaur, My Love é um conto de Rachel Swirsky que, por detrás da sua premissa aparentemente infantil (e explicada de forma perfeita no título) e por detrás da sua construção ao estilo de algumas histórias infantis que encandeiam ao longo da sua estrutura narrativa várias ideias numa série de extrapolações imaginativas, por vezes oníricas, quase no ritmo vertiginoso da livre-associação, esconde uma história de amor tão bela como trágica (Sim: a categoria de ficção curta dos Hugos – e já agora dos Nébulas – parece tomada por micro-romances. E isso é óptimo). Com uma prosa magnífica, Rachel Swirsky tece um jogo de palavras e de imagens fascinante, misturando noções de fantasia e de ficção científica numa narrativa que escapa às convenções de ambos os géneros – e com o mesmo ritmo perfeito e a mesma inocência encantadora com que transporta o leitor ao sabor dos saltos da sua imaginação, desfere um golpe duríssimo ao revelar a faceta trágica do enredo, e o escape que a livre-associação proporcionou.
If You Were a Dinosaur, My Love foi publicado na
Apex Magazine a 5 de Março de 2013.
The Water That Falls on You From Nowhere, de John Chu, assume a forma de uma comédia e de um drama de costumes a partir de uma premissa espantosa: a de que a mentira atrai chuva, e sempre que alguém mente, abate-se sobre si uma carga de água, com a gravidade da mentira a definir o volume do aguaceiro. Dito assim, a ideia parece engraçada – e é-o de facto. Também por isso impressiona a forma como John Chu a consegue revestir de uma carga dramática espantosa ao enquadrá-la na história de Matt, um jovem de ascendência chinesa com uma família muito conservadora, a tentar explicar aos seus pais e à sua irmã tradicionalistas que é homossexual. Chu constrói em poucas palavras uma história familiar verosímil, e com um ritmo perfeito desenvolve um drama bem temperado com momentos de comédia linguística – e recria com mestria o caos comunicativo de uma família composta por pessoas com diferentes idiomas nativos através da simples utilização de expressões e frases em chinês (literalmente).
The Water Falls on You From Nowhere foi publicado no
Tor.com a 20 de Fevereiro de 2013.
The Ink Readers of Doi Saket é um conto humorístico de Thomas Olde Heuvelt, publicado a 24 de Abril de 2013 no
Tor.com. À primeira vista, será talvez difícil ler este conto sem pensar no mestre definitivo do humor no fantástico literário: Terry Pratchett. Nem as notas de rodapé faltam (com a sétima a revelar-se especialmente inspirada) nesta breve narrativa, situada na aldeia remota de Doi Saket, nas margens do rio Mae Ping, na Tailândia. Para além dos seus afazeres diários, os habitantes da aldeia dedica-se com zelo à tarefa de realizar os desejos que são deixados no rio – mas a trama começa, não sem ironia, com Tangmoo, um rapaz cuja singularidade reside no facto de ser incapaz de desejar o que quer que seja. Thomas Olde Heuvelt desenvolve com um humor delicioso as desventuras das várias figuras da aldeia, sobretudo durante as festividades anuais – mas utiliza todo este riquíssimo panorama apenas para enquadrar o acontecimento central que dá o mote à narrativa, numa exploração tão fascinante como hilariante de temas como a coincidência, as relações determinísticas por vezes invisíveis na aparência que se desenvolvem entre as mais improváveis das situações, e sobre a ordem invulgar que consegue emergir do caos. A prosa, essa, está à altura das aspirações cómicas do texto: fluída, sofisticada e capaz de conjurar imagens surpreendentes.
Like this:
Like Loading...