A resenha mais importante. Em 30 de Julho de 1993, aparecia a seguinte crítica a GalxMente no jornal Público, secção Leituras, um texto de página inteira da cortesia do João Barreiros.
Em Busca da Carne Perdida
Publicar FC portuguesa num país onde ninguém lê, ainda por cima um «opus» de mais de trezentas páginas é, convenhamos, uma prova de coragem. Mas Luís Filipe Silva é assim mesmo. Não tem medo de nada. Enquanto lá por fora os autores de «mainstream» deixam de lado as agonias onfálicas do quotidiano para se perderem enfim nos meandros escorregadios do «slipstream», sonhando já com as agruras do novo milénio, em Portugal, pelo contrário, quando se fala do próximo século, estamos ainda a referir-nos aos primórdios do século XX. Talvez seja por isso que a literatura de FC nunca tenha surgido no nosso país, onde ciência e tecnologia continuam ainda a ser consideradas como assuntos pouco dignos de serem tratados na grande «Academia das Artes e dos Ofícios». Como se a fogueira continuasse a ameaçar a integralidade de todas as passarolas. Aprender a voar continua a ser perigoso. E contudo, o futuro, como diria Luís Filipe Silva numa outra obra, já está à janela.
Convenhamos que há uma certa razão para este afastamento desdenhoso da crítica e dos leitores pela FC portuguesa. Em boa verdade, nada do que foi até aqui publicado chegou a ser memorável. Da FC lusa, não consta sequer o famoso «sense of wonder» tão requisitado por Campbell. Monótona e enfadonha, pouco mais fez do que reproduzir as ambições limitadas de quem a escreveu. Perde-se em clichés que há muito se esgotaram. Não tem força de impacto. Compreende-se então que a crítica costume ignorar, por princípio, tudo o que de novo venha a surgir neste campo.
Faz mal, pois há excepções que confirmam a regra.
Luís Filipe Silva sabe perfeitamente que este género literário não se compadece com o atraso das nossas leituras. A FC vive essencialmente de um factor cumulativo, onde as novas criações vão acrescentar conceitos ao imenso manancial do nosso imaginário. João Aniceto e Isabel Cristina Pires, por exemplo, deixaram-se ficar num futuro próximo dos anos quarenta. Nas suas obras existem «explosores», «autómatos», «discos voadores», florestas em Vénus e atmosfera nas luas de Marte. Luís Filipe Silva está bem entre nós, mexe-se à vontade com os conceitos da nanotecnologia, ciberespaço, inteligências artificiais, telepresença e universos virtuais.
«O Futuro à Janela» prometia já qualquer coisa de bem diferente, se Luís Filipe Silva conseguisse libertar das influências mais directas. Com «A GalxMente», dividida em dois volumes por razões técnicas, todas as promessas foram cumpridas. Eis enfim em português um «space opera» pós-modernista, perfeitamente assumido e sem vergonha de o ser.
A divisão em dois volumes não beneficia o equilíbrio de uma obra que foi concebida para ser lida por inteiro.O arranque é lento e a narrativa só atinge a rapidez necessária precisamente quando termina o primeiro volume. Se a «Cidade da Carne» fosse um livro único, isto seria um defeito. Contudo, a apresentação do universo extremamente complexo dos Padrões e da GalxMente torna-se compreensível ao percebermos que o romance foi dividido ao meio só depois de ter sido escrito. Recomenda-se pois que o leitor espere pela saída do segundo volume, «Vinganças», para depois os poder apreciar por inteiro.
A nostalgia do corpo, da morte e da transcendência são as angústias dominantes deste space opera em dois volumes, a «GalxMente». Imagine o leitor um futuro tao distante que a totalidade da espécie humana trocou a prisão do corpo pela liberdade infinita de um Padrão Informático. As consciências individuais passaram a fazer parte do imenso «wetware» da GalxMente, uma superconsciência «colmeia» cuja rede informáica se espalha pela totalidade do sistema solar. Os Padrões, que guardam ainda um pouco dessa individualidade perdida, são imortais, pois podem ser copiados ou transmitidos de um planeta para o outro sem perda de informação. A Terra passou a ser um campo de jogos destes entes Nietzschianos. Constroem e destroem cidades, jardins, continentes. Servómatos comandados por telepresença entretêm-se a reproduzir a nata arquitectónica das antigas civilizações. E contudo, isso não basta. Os Padrões querem mais. Querem, por exemplo, saber o que é a morte. Se existe um outro céu além do céu virtual concebido pela GalxMente.
Para isso clonaram milhares de corpos humanos em cuvas de gestação. Corpos que habitam amiúde, transportando-se de um lado para o outro, como quem carrega uma mala de viagem cheia de carne congelada. Os Padrõe servem-se deles como se fossem um electrodoméstico barato, experimentando todos os seus limites através de um milhar de excessos sibaríticos (a não perder o banho do senador e o jantar dos jovens arrivistas) até por fim os descartarem, como quem se desfaz de um saco velho. Os Padrões são hedonistas com uma pontinha de sadismo à mistura. Prestam culto à mutilação e ao suicídio como forma de experimentarem, mesmo por procuração, um pouco desse prazer incompreensível que será o morrer para sempre.
Mas existem serpentes no éden, como é habitual acontecer em todas as utopias. Neste caso as serpentes são seres humanos, doentes e mutilados, sem possibilidade de ascender à imortalidade da GalxMente. Humanos que, ao saberem mortais, costumam criar obras de arte inolvidável. Esses humanos somos todos nós, vivendo num mundo que se assemelha ao final dos anos noventa, hipnotizados, drogados, vítimas de um universo virtual que aos poucos se vai desmoronando. «A Cidade da Carne» revela-nos o início do conflito entre os «mortais» que descobriram enfim os limites do mundo sintético onde foram encerrados, e um grupo de «Padrões» fascinados pela morte, principalmente quando essa morte, graças aos actos terroristas de uma série de humanos «despertos», é para sempre.
O segundo volume certamente nos dirá qual foi o resultado do conflito. Pelo que a «Cidade da Carne» deixa entrever, as conclusões poderão ser todas menos as mais óbvias.
Capa minimalista, perfeitamente horrível, que em nada defende a complexidade e riqueza do romance de Luís Filipe Silva. Já era altura de a Caminho mudar de tipo de capa ou, ainda melhor, de desenhador.