Antes de conquistar a fantasia e a ficção científica com dois clássicos absolutos -
A Wizard of Earthsea e
The Left Hand of Darkness, respectivamente -, Ursula K. Le Guin começou por desenvolver em três romances curtos um universo ficcional que, enquadrando-se na ficção científica (era o género mais popular na época), acabam por evocar uma certa atmosfera e algumas convenções da fantasia literária.
City of Illusions, de 1967, fecha o ciclo iniciado um ano antes por
Rocannon's World e por
Planet of Exile, com os quais surgiu o "Hainish Cycle" que viria a enquadrar algumas das suas obras maiores - e fá-lo com um romance que, longe de ser um dos melhores da sua bibliografia, nem por isso deixa de ser um curioso Le Guin
vintage, uma exploração inicial de uma autora à procura da sua voz literária e do seu próprio território temático.
E nesse território temático encontra-se a procura da verdade, tema que explorou a partir de várias perspectivas ao longo da sua obra. Aqui, fá-lo através de um enigma em forma de personagem: um homem anónimo e sem memória e com a mente esvaziada, perdido numa vasta floresta na Terra, encontrado por uma pequena comunidade isolada entre as árvores. Os seus olhos cor de âmbar, a lembrar os de um felino, marcam-no como estranho, atribuem-lhe uma origem desconhecida e possivelmente extra-terrestre; mas a desconfiança de alguns elementos da comunidade não é suficiente para demover o líder, que o aceita entre os seus, permite a sua educação e concede que lhe seja atribuído um nome: Falk. Durante os anos que se seguem, Falk aprende com a comunidade, e em especial com a jovem Parth, o que é ser humano - como falar, como caçar, como ser parte de todo e não um indivíduo isolado, reduzido a um estado primitivo e quase selvagem. Naquela comunidade perdida, mantida em segredo pelo receio do Inimigo, dos misteriosos Shing que mantém o mundo preso no marasmo civilizacional, Falk passa por uma rápida infância e torna-se num novo homem - mas atrás de si reside uma escuridão incomensurável, um passado desconhecido que o assombra a cada momento, e que o leva a perguntar se haverá um futuro diferente.
É esse passado e essa expectativa de futuro que leva Falk a deixar a comunidade, rumo ao desconhecido que existe para lá dos limites da floresta que, para o povo que o acolheu, é praticamente tudo o que conhecem. Como destino da sua demanda está Es Toch, a lendária - e temida - cidade dos Shing, onde Falk espera encontrar as suas respostas. Mas se o caminho para lá chegar será sinuoso - as demandas, afinal, nunca são fáceis, as respostas que irá obter poderão ser bem diferentes do que alguma vez imaginara.
A prosa da jovem Le Guin já aqui transporta a trama com facilidade, elevando-a de forma considerável em alguns momentos - as suas descrições de Es Toch são notáveis pela abstracção que evoca, e é fascinante vê-la a passar de um registo de quase fábula, como a estada de Falk na casa do eremita na floresta com os animais que falam, para as descrições tecnológicas de alguns momentos de pura ficção científica. Tal como nos romances anteriores, Le Guin revela-se hábil na combinação nem sempre provável da fantasia com a ficção científica, e utiliza-a para construir a Terra num futuro distante que há muito deixou o apocalipse da queda da Liga de Todos os Mundos para trás. O longo travelogue de Falk serve precisamente para apresentar todo esse mundo, bem mais vasto do que as fronteiras da floresta original - e ainda que por vezes careça do ritmo apropriado para se tornar numa parte mais estimulante, nem por isso deixa de ser eficaz neste propósito.
Dito isto, City of Illusions não deixa de ter os seus problemas - com os Shing e a sua caracterização a serem um dos principais, mas não o único. O ritmo narrativo, mais incerto do que nos romances anteriores, revela-se demasiado lento na primeira parte, após um início sólido e um final aberto bastante satisfatório. Ainda longe da forma perfeita de The Left Hand of Darkness ou The Dispossessed, Le Guin não toma algumas opções mais arriscadas, e em vários momentos sente-se que toda a trama poderia beneficiar de mais alguma energia e, sobretudo, de mais alguma ousadia e ambiguidade. E, claro, de mais alguma complexidade nas personagens - mais mais do que aos Shing, falta desenvolvimento a Estrel, que tem um papel fundamental no romance, e ao próprio protagonista. Ainda assim, a forma como o mistério em volta de Falk é tecido funciona bastante bem (com uma excelente red herring a meio), e a duplicidade dos Shing dá um estímulo fundamental aos últimos capítulos.
Olhando agora para trás, faz todo o sentido que Rocannon's World, Planet of Exile e City of Illusions estejam hoje em dia publicados num único volume - ainda que não constituam uma trilogia no sentido convencional do termo, há entre eles ligações mais do que suficientes (e sobretudo entre os dois últimos) para justificar a opção e dar uma certa noção de continuidade. Uma continuidade que sai reforçada pelo tom das três histórias, pela forma como Le Guin desenvolve ficção científica em território de fantasia (ou vice-versa), e por alguns temas que acabam por se cruzar e sobrepor, explorados a partir de pontos de vista distintos. Não são o melhor de Le Guin, de facto - mas são um início promissor, ainda que discreto na sua época, e ilustram na perfeição como conseguiu a autora avançar em simultâneo por duas vertentes tão distintas como a sua ficção científica mais complexa e as histórias de fantasia de Earthsea, estabelecendo-se como uma das maiores autoras em ambos os géneros. Para os fãs de Le Guin, serão decerto leitura obrigatória; para os apreciadores de ficção científica e de fantasia, ficam como leitura recomendada.
Título: Worlds of Exile and Illusion (Rocannon's World, Planet of Exile e City of Illusions)
Autora: Ursula K. Le Guin
Editora: Orb Books/Tor
Ano: 1996 (1966-1966-1967)
Formato: Paperback
Páginas: 370
Género: Ficção Científica