É difícil falar de The Sandman a partir de qualquer uma das suas divisões - fascículos, novelas gráficas em trade paperback. A teia que Neil Gaiman tece adensa-se a cada vinheta, e cada pequena história só na aparência se mostra isolada ou de importância passageira, servindo de catalisador para a trama avançar por caminhos que se manifestam com frequência inesperados. Há alguns meses, dediquei este espaço ao primeiro volume da colecção, Preludes & Nocturnes, que junta os primeiros oito fascículos e estabelece uma certa continuidade narrativa nos universos de comics da DC (o próprio Sandman, de resto, é recuperado de forma especialmente imaginativa por Gaiman). Por uma questão de simplificação, e por as edições em trade paperback estarem a marcar o ritmo (lento) da leitura, avançarei hoje para o segundo volume, The Doll's House.
O primeiro aspecto a notar nos oito contidos em The Doll's House é o afastamento notório e progressivo deste universo ficcional da restante continuidade da DC/Vertigo - depois da aparição de várias personagens clássicas como John Constantine, Martian Manhunter e Dr. Destiny, Sandman afasta-se dos cameos para se centrar nas suas próprias personagens e na sua própria intriga. E aqui, no seu território, começa a lançar sementes que decerto darão frutos inesperados enquanto desenvolve a história de Rose Walker, neta de Unity Kinkaid, que padeceu na adolescência do misterioso sono que se abateu sobre algumas pessoas na sequência da captura e do subsequente encarceramento de Morpheus, para voltar a acordar na velhice. Rose está intimamente ligada ao Sonho, e na sua trama unem-se as fugas tortuosas de quatro criaturas do domínio de Morpheus, que o Senhor dos Sonhos se vê obrigado a perseguir e a capturar. Desire e Despair, duas Endless como o protagonista, são introduzidas logo no início da trama, numa tentativa de manipulação dos acontecimentos, e do seu irmão mais velho, para fins que só Desire conhecerá.
A forma como Gaiman desenvolve a história através de histórias, com detalhes na aparência laterais a assumirem grande importância mais à frente, assemelha-se quase a uma tapeçaria que o autor tece com mestria, dando forma a um padrão ininteligível cuja verdadeira imagem só se poderá adivinhar quando tudo estiver dito - a cada ponto evocando aquilo que ficou para trás e deixando indícios do que se seguirá. No prólogo, uma viagem até um passado proto-mitológico que conta a história da Rainha Nada e do seu romance trágico com o Senhor dos Sonhos, encontramos uma passagem intrigante, aludida por Desire mas intimamente ligada à passagem de Morpheus pelo Inferno em Preludes, e a antever aquele que será porventura o mais importante dos acontecimentos narrados no quarto volume, Season of Mists. Da fuga de Brute e Glob emerge, com discrição, a família Hall, cujo único descendente assumirá um papel determinante no desfecho de toda a série; e do interlúdio entre Morpheus e Hob Gadling, introduz de passagem William Shakespeare e Johanna Constantine, que não surgem aqui por acaso. Outro autor, com mais ambição do que talento, poderia aqui dar um passo maior do que a perna e dispersar a trama ao ponto de se revelar impossível atar as várias pontas soltas e restabelecer a coesão do arco narrativo principal, mas Gaiman não dá ponto sem nó: cada pormenor surge encaixado com precisão no momento certo, sem que em momento algum a trama se disperse sem propósito; e a cada nova passagem consegue surpreender pela imaginação das suas tramas (a convenção de serial killers é de antologia).
Em The Doll's House encontramos um Gaiman na plena posse das suas capacidades de contador de histórias através da simbiose entre a palavra escrita e a ilustração - e a sua prosa eficaz, evocativa e rica em referências literárias faz-se acompanhar pela arte sólida e consistente de vários ilustradores e coloristas, como Mike Dringenberg, Malcolm Jones III, Chris Bachalo, Steve Parkhouse, Michael Zully, Dave McKean, Sam Kieth e Robbie Busch. Há momentos de grande inspiração, como o sonho de Rose com o censo no Sonho, deliciosamente expandido pelas páginas; ou a Parte 3, intitulada Playing House, no domínio nos sonhos de Jed, com uma ilustração soberba no confronto de Morpheus com um oponente inesperado. Mas mesmo a imagem acaba por ser um pouco secundária; Sandman, para todos os efeitos, continua a ser uma narrativa de carácter profundamente literário, cujos alicerces residem sobretudo na força das palavras de Gaiman e na verosimilhança das suas extraordinárias personagens, numa das histórias mais fascinantes da fantasia moderna.
* Conclui há dias a leitura de Season of Mists, o quarto volume da colecção (logo falarei dele outro dia, depois de Dream Country). Ainda há, como é bom de ver, um longo caminho a percorrer nesta leitura fascinante, pelo que fica o apelo para que se evitem spoilers em eventuais comentários.