Arquivo do dia: 2014-06-27
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May you live in interesting times é uma frase atribuída (de forma muito pouco rigorosa) a uma maldição chinesa evidentemente sarcástica - e, em 1994, serviu de mote a Interesting Times, o décimo-sétimo volume da série Discworld, de Terry Pratchett. O título não engana: desta vez, o pano de fundo da sátira aguçada de Pratchett será a China Imperial, cujos elementos mais característicos são transportados para o Império Agatean, no longínquo (se tomarmos Ankh-Morpork como referência) Continente Contrapeso. E a explorá-las estará Rincewind, regressado à ribalta depois de The Colour of Magic, The Light Fantastic, Sourcery e Eric. Como não podia deixar de ser, Rincewind faz-se acompanhar de um elenco de personagens recorrentes nas suas aventuras - a inevitável e homicida Luggage, Cohen the Barbarian e a sua "Silver Horde" geriátrica, e até Twoflower, o primeiro turista do Disco, que acompanhou Rincewind na odisseia inesperada de The Colour of Magic e The Light Fantastic; e a trama, essa, consiste numa aventura frenética com Rincewind a tentar evitar sarilhos, e a arranjar sarilhos a cada passo.
Mas comecemos pelo início. Interesting Times abre com os deuses de Discworld a prepararem-se para um jogo (no caso, será uma partida de Cluedo, ou do que no Disco passaria por Cluedo) que decidirá a sucessão do vasto Império Agatean, situado no Continente Contrapeso. Ou dois deuses, pelo menos, com o resto do panteão a assistir: ninguém gosta de jogar contra o Destino, mas a Sorte tem um ás na manga: Rincewind. Retirado do seu aborrecido (e nada perigoso) exílio numa ilha deserta por uma evocação da Unseen University, a pedido de Lorde Vetinari: o Imperío Agatean exige que Ankh-Morpork lhe envie o "Grande Feiticeiro" para concretizar uma profecia local, e os feiticeiros académicos decidem enviar Rincewind, num feitiço calculado com rigor científico por Hex, o supercomputador que Ponder Stibbons desenvolveu (ou ajudou a desenvolver, já que Hex se tem desenvolvido a si mesmo).
Claro que ninguém pergunta a Rincewind se ele quer ir para o Agathean Empire - muito menos para representar um papel numa lenda local de um império à beira da revolta - ou que estaria à beira da revolta se toda a gente não fosse tão educada - por causa da conspiração de Lorde Hong para usurpar o trono imperial e do movimento subversivo (e com boas maneiras) do Exército Vermelho, estimulado por um panfleto revolucionário intitulado What I Did on My Holidays. No seu percurso, Rincewind encontra Cohen, o Bárbaro, com a sua horda de cinco bárbaros idosos e um professor reformado, que prepara na capital do império, Hunghung, um golpe que lhes garantirá uma reforma adequada. E reencontra Twoflower, autor não-intencional do manifesto subversivo. Mas será preciso muito mais do que um Grande Feiticeiro para dar início à rebelião...
Terry Pratchett explora os motivos, os mitos e as idiossincrasias da China Imperial através do seu já habitual ângulo cómico - e revela-se fascinante ver como encaixa no seu worldbuilding elementos como a Grande Muralha ou o Exército de Terracota de forma exemplar, como se dele sempre tivessem feito parte. Os elementos característicos do Oriente (ou do Aurient) surgem acompanhados por conceitos tão típicos de Discworld como a Quantum Weather Butterfly ou Hex, o super-computador da Unseen University (num pun que exemplifica na perfeição o génio humorístico de Pratchett). Não faltam ao longo do texto jogos de palavras tão inteligentes como divertidos, as situações absurdas, as referências pop e históricas ora óbvias, ora completamente fora do baralho, e, claro, as coincidências espantosas que sempre seguem Rincewind, com resultados hilariantes.
Mas por entre os jogos de palavras, a sátira e a aventura rocambolesca, Pratchett vai um pouco mais longe, desenvolvendo em Interesting Times uma reflexão muito articulada sobre a natureza das revoluções, sobre o poder e sobre o heroísmo (mesmo quando acidental). É um subtexto interessante, explorado com mestria e ironia através do olhar de Rincewind durante o seu estado quase permanente de flight or flight, e que dá toda uma outra dimensão ao romance.