Arquivo do dia: 2014-06-21
Nesta era de minuciosa consubstanciação do imaginário, capaz de sobrepor actores de carne e osso (ou pele e osso, em alguns casos graves) com colegas digitais e ampliar cenários minimalistas para vistas amplas e inexistentes, verdadeira utopia do espectáculo que nem o mais optimista dos fãs conseguiria, há duas décadas e picos, antever com voz e pés firmes sem vacilar na dúvida do exequível, há quem denuncie uma sensação de cansaço, de saturação, de ennui (puxando ao snobismo) pela ubiquidade das ditas ICC (imagens-criadas-por-computador, se o tuga não desdenhasse dos acrónimos vertidos na [que devia ser] sua fala) em tudo o que é cinema de género ou não-género, sacrificando enredos e subtilezas à perfeição pixilada, apontando holofotes ao que outrora se manteria na sombra e enchendo os planos de extras mais convincentes e controláveis que os de Griffith (embora custem praticamente o mesmo por cabeça).
A decisão artística já foi ultrapassada pela comercial: os cifrões ditam que é preferível sobrepor recortes no computador e despachar a coisa no estúdio do que levar a equipa toda em viagem para filmar em locais remotos. Mas, obrigados a contracenar com marcações visuais em palcos minimalistas forrados a verde, os actores decerto que começam a sentir que não passam de figuras secundárias e verdadeiros empecilhos para o grande cabeça de cartaz: o digital. Talvez descubram que são o próximo alvo a abater, quando a tecnologia avançar e as multidões acolham com fervor as primeiras celebridades virtuais (o que, creio, apenas depende da capacidade de produzir rostos e expressões complexas e convincentes em tempo real). O filme Gravidade é revelador, nesse aspecto, mas pelo oposto – recebeu louvores pelo virtuosismo técnico como se representasse o último grito de um cinema moderno, quando esse virtuosismo derivou exclusivamente da necessidade de casar a actuação física com cenários computadorizados. O “making off” revela os níveis de energia dispendidos por actores e equipa ao adequarem as contorções de corpo, iluminação e câmara à ditadura da composição digital – energia que, dizem as boas práticas e a história do cinema, devia ser melhor dispendida a obter a excelência da narrativa e dos desempenhos. Mas Gravidade é o último dos moicanos, o fim da raça. Como exemplo de um possível futuro imediato do cinema, escolheria Avatar, não obstante a abordagem ainda tímida e conservadora. Nele se antevê um tempo em que as figuras virtual e a física de um actor serão indistinguíveis ao nível do pormenor. Em que actuações imperfeitas serão “emendadas” na pós-produção para lhes dar mais intensidade, mais realismo, ou para mudar os diálogos, os manerismos, os penteados, a roupa. No limite, vai ser possível interpretar a Guerra dos Tronos em cuecas e barba por fazer, sabendo-se que o produto final incluirá as devidas armaduras e fatos de época numa paisagem medieval. Vai ser possível mudar o movimento da boca e lábios para combinar com a dobragem e consoante o idioma. Finalmente, teremos os actores compósitos, que resultam da combinação das melhores características de vários performers – aproveita-se a cara de um, as mãos de outro, o tronco de um terceiro, a articulação sonora de um quarto, o andar de um atleta, o dançar de um bailarino, e monta-se uma figura que reune o melhor do grupo. Onde estará aqui a autoria? A veracidade? O individualismo? Será que sequer lhes sentimos falta?
O que uma geração estranha, a outra entranha. Este cinema novo não será o nosso, mas crianças ainda por nascer irão acolhe-lo com toda a naturalidade. Não vai demorar até que o virtual se intrometa no real, e vice-versa, a ponto de comprometerem uma separação.
Isto não significa que o cinema filmado, ou uma variante, desapareça. A História deu suficientes provas de que a tecnologia funciona por acumulação – não foi por fabricarmos carros que não há carroças, mas sim e apenas porque o rácio eficiência/custo é substancialmente melhor. O uso de actores, cenários e formas tradicionais de filmagem irão manter-se para os extremos da equação, para os nichos: filmes de autor, filmes de iniciantes. Mas estes não pagam as contas dos estúdios, que subsiste pela faixa de cinema a metro, onde se enquadram as aventuras, as comédias românticas, os policiais bem-comportadinhos, as adaptações de livros famosos, o cinema de massas, e que acolherá de braços abertos a nova forma de fazer bem e barato. It’s only and always about the money, boys and girls. Nada apraz mais um investidor do que garantias de resultado; e a garantia é tanto maior quanto menor for o nível de mão-de-obra. Veja-se: é inviável reunir elencos para voltar a filmar cenas que não ficaram bem, ou mesmo o filme inteiro, trocar o sexo ou raça de um personagem, mudar diálogos após as primeiras exibições... se o filme for inteiramente digital, não só a possibilidade surge como se tornará cada vez mais barato poder optar.
Tendo esta perspectiva em mente, é possível encarar Debaixo da Pele como um exemplo antecipado desse cinema de nicho, minimalista e saturado de realidade, como se, de algum modo, tivesse viajado para o passado de modo a dar origem à tendência em que se irá enquadrar.
(Sim, afinal o propósto do texto é falar da obra realizada por Jonatham Glazer.)
Antes de apreciar a originalidade do filme, é preciso entender que nada tem de original. Os anos 70 foram ricos em experimentalismo narrativo no cinema (os paralelos com Nicolas Roeg são óbvios e referidos por diversos criticos, e aqui acrescentaria Antonioni e Polanski, embora com ressalvas) ao qual este filme presta homenagem nas sequências iniciais, que a ignorância classifica como abstractas mas cujo significado, após uma ponderação retrospectiva, permite revelar como essencialmente concretas: retrata alguém que nasce, alguém que se adapta, alguém que aprende a falar, alguém que se transforma. Desde o início que a realização se mostra desconfortável e distante. Ao invés de começar com uma voz off acolhedora, à la Blade Runner original, qual comandante de avião que nos assegura de um vôo estável, somos precipitados numa queda vertiginosa, sem piloto nem controlo. Iremos embater na terra e morrer, ou entrámos em órbita segura? Não há forma de saber sem chegar ao fim, e chegar ao fim é deixar de saber, para sempre.
A desorientação é, no entanto, ilusória. Nós – filme e audiência – somos filhos da mesma geração. Não podemos impedir de trazer expectativas e modos de leitura no bolso, quando entramos na sala, e não podemos fazer com que se calem nos momentos de pânico. O truque de Glazer é, aqui, encher-nos de mundano, saturar-nos de realidade, de sequências que parecem oportunas e não planeadas, de actores que não são actores nem se apercebem que entraram num mundo fictício, em sublime aderência ao cinema verité, para, quando surgir o elemento Fantástico, este se revele como estranho e anti-natural, produto de uma manipulação visual que é, e sempre devia ser, considerada intrusiva. Graças a esta saturação, torna-se possível entender as sequências da sala escura, em que as vítima são «absorvidas» com um rigor novamente minimalista, como metáfora mas também como acção de tecnologia avançada, alienígena – precisamente a dualidade de leitura que distingue a Ficção Científica quando conceptualmente bem feita.
A verdadeira originalidade do filme não está realmente na estrutura nem na abordagem, mas na confiança extrema que deposita na audiência. É um pulo de fé por parte de realizador, argumentista actores e produtores que vai contra a grande maioria... não, direi contra todo o cinema de género. Confiança numa perícia de entendimento das pistas narrativas só possível a uma geração nutrida em massivas doses diárias de ficção televisiva. Confiança de que, embora desprovido das setas indicadoras e dos sinais de aviso a que está habituado, o espectador consiga orientar-se a tempo de apreciar a história. E é uma história surpreendemente terna.
Neste ponto, convém explicar que a minha leitura não foi inocente. Cheguei ao filme com o conhecimento pleno de Debaixo da Pele, a obra de Michel Faber que a Difel editou em 2001 com tradução de António Pescada, e da qual me queixei profusamente numa resenção publicada no suplemento DNA (do Diário de Notícias). Em causa estava o enquadramento numa tradição de Ficção Científica, a do extra-terrestre entre nós, invisível e nocivo (outras variantes apresentam-no alternadamente como visível e/ou benéfico). Este extra-terrestre cultivava artificialmente o nosso aspecto, em particular o de uma condutora boazona que percorria as desoladas estradas da Escócia a fazer vítimas dos penduras a que ia dando boleia. Qual o propósito? Engordá-los em cativeiro e despachá-los para o planeta natal como deliciosas iguarias. A premissa não é inédita: nos anos 50, Damon Knight escreveu um conto que seria adaptado para um episódio da Qunta Dimensão e assim ficaria famoso: alienígenas avançados surgem na Terra na posse de um curioso livro intitulado «To Serve Man», e cuja interpretação imediata pelas populações ignorou que «servir» pode ter dois sentidos muito distintos... É obviamente uma sátira que revela o quão predispostos estamos a fazer leituras preconceituosas de situações que podem esconder um foro muito diferente. E como sátira, funciona: é curta, é mordaz, é divertida. Precisamente o que o livro de Faber não é. A ironia dilui-se no monólogo interior da condutora alienígena que se queixa das operações a que foi submetida para se parecer com um ser humano e na crescente resistência em continuar a actividade predadora; na pormenorização dos encontros, das boleias, do que acontece às vítimas. A visão perturbante da pele, do visível, do físico, como principal meio de inclusão e exclusão, que o filme explora com destreza, é aflorada mas acaba por esvaír-se no meio das outras preocupações e distrações. Faber percebe correctamente que um romance não subsiste num único conceito e enche-o com a variedade necessária para cumprir o mínimo de páginas, e contudo devia ter-se ficado pelo conto. Porque o problema é este: a leitura da Ficção Científica impele ao questionamento dos pressupostos. O que há na carne humana que possa interessar a extra-terrestres? Não havendo a sensação de pecado pelo acto canibal, porque não comer os herbívoros ou mesmo os carnívoros do nosso planeta? Aos animais ninguém sentiria a falta e seriam mais fáceis de recolher e criar do que pessoas... E se a intenção é mesmo comer pessoas, por algum motivo inescrutável, porque escolher a Escócia ou outro país desenvolvido em que existem registos de nascimento, meios de vigilância, forças policiais consolidadas, que acabariam por descobrir padrões nos desaparecimentos das vítimas, e não outros países mais selvagens, mais populosos, cuja instabilidade social ou repressão política permitiriam que tais actos permanecessem impunes e desapercebidos? Questões como estas tornam-se empecilhos e bloqueiam o apreço da obra para o fã experiente no género. Dirão: «mas que grandes chatos!, para quê questionar o impossível, será que acreditam mesmo em ET’s e mudanças de pele e outras coisas infantis? Aceitar o ET é aceitar que se comporta de uma forma não humana, e por isso, é legítimo que tenha uma inclinação natural por escoceses à boleia... E de qualquer forma não é tudo metáfora?»
Bem, sim e não. Sim, no limite é tudo metáfora. Mas tem de ser uma metáfora bem articulada. Tem de ser convincente. Há que distinguir o fã que, com a sua longa dose de exposição a referências literárias e debates sobre os pressupostos do género, consegue abordar a obra com espírito crítico do leitor a quem a problemática se coloca pela primeira vez e é naturalmente incapaz de digeri-la enquanto lhe é apresentada. Ser-se específico é dar destaque às contradições e às inferências implausíveis, é dar o flanco ao inimigo.
Onde Faber é verborreico, Glazer é inteligentemente comedido. O filme tem o sabor de uma pequena lição de moral contada sem pressas. Permite-se a uma leitura abstracta e filosófica que se pode encaixar em muitas situações de uma vida normal. E como disse acima, é terno de uma forma desconcertante.
As histórias costumam ter uma porta de acesso emocional; sem esta, tornam-se frias, analíticas e decerto pouco populares (o que não significa que não possam ser obras-primas: Ballard e as suas fábulas das Vermillion Sands é o exemplo fácil). Pode ser uma personagem com quem o leitor se identifica, uma situação do dia-a-dia (já notaram que os filmes-catástrofe começam por apresentar a família dos protagonistas numa cena caseira, por exemplo, o pequeno-almoço, interagindo com energia mas em que se percebe o amor subjacente?), um momento na vida (como a morte de um familiar), ou outro qualquer truque que desperte a empatia. Uma história pode ter várias portas, em qualquer ponto do enredo, e diferentes leitores entrarão (e sairão, talvez) consoante a sensibilidade de cada um.
A minha porta de acesso para o filme foi a presença de Adam Pearson, o jovem autor com neurofibromatose que desperta o primeiro acto de compaixão (e rebeldia) da alienígena. É indubitavelmente o momento de epifania para o qual tudo converge, mas é também uma conversa subitamente íntima com alguém que (sabemos pelo que se escreveu na imprensa) está e não está a representar. Quatro ou cinco perguntas desconfortáveis sobre uma vida que não terá sido fácil em sociedade, e quebrou-se a quarta barreira: o filme fala connosco, directamente. Para não termos dúvidas, chama-nos a atenção – no plano aproximado das mãos de Pearson, que Johansson considera bonitas, e nos são apresentadas como tal, mãos singelas de uma pessoa normal sem deformidades, um plano que é desnecessário para efeitos da história mas indispensável para efeitos do percurso emocional da audiência. De súbito, o que parecia estilo de filmagem surge como necessidade. A mensagem perderia o sentido se, até ali, o digital tivesse sido usado com a displiscência de outros filmes. Mas a vida é crua e aleatória, fazendo de nós vítimas e carrascos de um jogo que castiga o íntimo através da pele. Somos corpo ou pensamento? O que somos nós? Quem está debaixo do aspecto de Scarlett Johansson? Dito assim, parece um filme de actores. Mas acaba por ser – como devia ser – o filme de toda a gente.
É um filme isento de defeitos, inconsistências? Creio que não. Estaríamos à espera de os alienígenas terem uma forma de comunicarem entre si, de justiça, de perdão, de segunda oportunidade. Afinal, o problema foi remediado – a vítima fugida acaba por ser capturada, e mais um desaparecimento (em particular, de quem não teria muitos amigos), no limite, iria obrigar o grupo a mudar de poiso. A fuga e o isolamento de Johansson, a procura desesperada do humano, a incompreensão do que é o amor e o perigo (aquele que a acolhe e tenta cuidar dela é dos poucos exemplos abonatórios do género masculino; os homens neste filme são reduzidos ao retrato de predadores sexuais, seja pelo aproveitamento de uma conquista fácil seja pelo acto da violação), tem uma leitura fácil de questionamento da identidade que argumentista e realizador intensificam mas que, pensada a frio pela perspectiva do alienígena, devia antes ser interpretada como uma doença do foro mental – quem nos consideraria saudáveis se andássemos pelos matadouros a tentar estabelecer contacto com o gado? Em grande medida, acaba por ser a convicção de Johansson naquele papel que nos transporta para o seu universo, contida nas emoções, fria e distante observadora, uma actuação auto-referencial sobre outra actuação. Excepto num momento, excepto num momento singelo que a compromete.
A extra-terrestre na demanda pelo ser humano não pode evitar a curiosidade que a impele e da qual se torna vítima. É curiosidade – e não amor – que a conduz à cama do homem que a acolheu. É curiosidade – e não desejo – o que procura satisfazer. E a curiosidade satisfaz-se, observando. Manteria os olhos bem abertos quando o homem se aproximou para o primeiro beijo.
Johansson fecha os olhos. As pálpebras tremem de expectativa. A extra-terrestre de repente age e sente como uma menina?
São mesmo muito chatos, os fãs de FC e as suas picuinhices...
Desde então, este universo ficcional já foi expandido em vários contos (compilados quase todos em duas antologias cujos títulos em inglês são Sword of Destiny e The Last Witch, de 1992 e 1993 respectivamente) e em seis romances: Blood of the Elves (1994), Time of Contempt (1995), Baptism of Fire (1996), The Swallow's Tower (1997), Lady of the Lake (1999) e Season of Storms (2013), sendo este uma prequela ao primeiro romance. A popularidade da saga foi suficiente para garantir várias adaptações - primeiro para uma série televisiva e um filme pouco memoráveis, e mais tarde, pela mão dos estúdios da CD Projekt Red (também polacos), para um videojogo role-play de culto que se tornou num fenómeno mundial, e que já vai para o terceiro título (e poucos jogos de 2015 são aguardados com tanta expectativa como The Witcher 3: Wild Hunt).