Para satisfazer os leitores que, pontualmente, me enviam emails ou mensagens de Facebook com perguntas sobre assuntos relacionados com Lisboa que leram nos meus romances ou que encontraram em outras fontes, lembrei-me de compilar uma pequena lista de dez informações históricas sobre Lisboa que, provavelmente, poucos conhecerão. Cada um dos dez temas aqui apresentados é importante o suficiente para exigir um artigo mais extenso, mas, para já, ficam servidos por estes breves apontamentos que, espero, sejam do vosso gosto. Assim, convido-vos à descoberta de...
Dez Coisas Que Desconheciam Sobre Lisboa
1 - Lisboa é mais velha que Roma
De acordo com os mais antigos vestígios arqueológicos encontrados nas explorações do claustro da Sé, Lisboa foi fundada por viajantes fenícios. Em rigor, foi fundada por indivíduos provenientes de uma ou de várias das muitas cidades-estados portuárias que formaram a civilização canaanita (Tiro, Sidon, etc.), porque a palavra «fenício» é apenas uma alcunha que deriva do nome grego «phoiníké» que significa, mais ou menos, «avermelhado»: uma alusão ao corante púrpura que aquela civilização ficou famosa por extrair de um pequeno molusco marinho, chamado murex, usado para tingir tecidos e vestes destinados à realeza. Os fenícios navegaram para longe em busca de estanho para fazerem bronze (o bronze é um metal dúctil que se obtém misturando estanho com cobre) e a Península Ibérica sempre foi rica em estanho. Foi, pois, em 1200 a.C. (século XIII a.C.) que os navegantes fenícos fizeram um pequeno posto comercial no território que, mais à frente, se haveria de chamar Lisboa. Por outro lado, Roma só foi fundada em meados do século VIII a.C. (cerca de 753 a.C.).
2 - Ninguém sabe de onde veio o nome «Lisboa»
A verdade é que não sabemos de onde vem o nome «Lisboa». Uma hipótese que tem sido esquecida é a de que, na foz, o Tejo costumava ser chamado de Lisidan ou Lusidan: nomes cujo prefixo «Lis», de raiz indo-europeia e que se encontra, também, com menores variações no galês e no bretão, poderão significar «brilhante» ou «luminoso». Porém, uma hipótese mais credível é a de que «Lisboa» provém de um nome fenício: «alis ubo», que significa «enseada amena». Na passagem do século III para o II a.C., no contexto das Guerras Púnicas, os romanos conquistaram aos cartagineses a Península Ibérica, a que chamaram Península Hispânica («ibérica» era uma designação grega, mas, nesta altura, «hispânica» nada tinha a ver com «Espanha») e foi nessa sequência de eventos que a primitiva "Lisboa" se transformou num município romano, a que se deu, depois, o nome oficial de Felicitas Julia Olisipo, adoptando o topónimo existente. A ideia tão romanceada de que foi fundada por Ulisses, aquando dos seus dez anos de errância marítima (terminada a guerra de Tróia), que a terá baptizado de Ulisippo, é uma fantasia que nem na etimologia se sustenta, pois, em grego, Ulisses chama-se Odysseus e é evidente que desse nome nunca poderia ter derivado o de Ulisippo. O nome «Lisboa» provém directamente de «Lixbõa»: a versão árabe do acusativo da palavra romana «Olisipo», que é «Olisipona».
3 - Lisboa não tem sete colinas
A ideia de que Lisboa foi fundada sobre sete colinas é uma invenção para inscrevê-la no rol de importantes cidades clássicas que arrogaram a tradição, mais ou menos poética, de terem sido fundadas sobre sete colinas, como Roma, Jerusalém ou Meca. Na verdade, é uma tradição que menoriza Lisboa, porque esta nunca teve, apenas, sete colinas: Lisboa tem onze colinas. Numa delas (um extinto vulcão pré-histórico), fica o Forte do Marquês de Sá da Bandeira (Forte da Serra de Monsanto), na freguesia de Benfica, que é o local mais alto da cidade, com quase 230 metros de altitude (são 227 metros); muitíssimo acima do Castelo de São Jorge - tantas vezes laureado, injustificadamente, como sendo o local mais alto da cidade. O bairro mais alto da cidade também não é o Bairro Alto, mas o de Campolide, com o qual rivalizam as cotas mais elevadas das zonas de Telheiras e de Carnide.
4 - Lisboa sempre foi uma cidade multicultural
Não pensem que só agora é que Lisboa é uma cidade multicultural. Aliás, uma das melhores provas de que Lisboa, mesmo após a reconquista, manteve o multiculturalismo que lhe era reconhecido, ou seja as suas matrizes judaicas, árabes e outras, é a de que demorou vinte e três anos a receber carta de foral de D. Afonso Henriques, desde 1147 até 1170. O que é que isto significa? Significa que Lisboa precisou de vinte e três anos para reunir um número satisfatório de cristãos, porque somente com uma comunidade numerosa de cristãos podia ser autorizada a criação de uma câmara para a cidade se governar a si própria. Por outro lado, isto também indica que a população de Lisboa continuava a ser pouco numerosa, tal como no período romano. Sabemos que a lotação do teatro romano, descoberto na encosta do Castelo de São Jorge, depois do Grande Terramoto de 1755, era de cinco mil lugares e tinha, apenas, 60 metros de diâmetro - não chegava a ser um teatro de dimensões médias. Fica a informação de que quem entregou Lisboa, em 469, aos Suevos, grupo multi-étnico vindo da zona do Mar Báltico, foi o governador romano Lusídio. Todavia, os suevos não gozaram nada da cidade, porque foram, ainda nesse ano, expulsos pelos Visigodos: outro grupo multi-étnico, oriundo do Norte da Europa. Estes nomes colectivos (visigodos, ostrogodos, suevos ou vândalos, por exemplo) são nomes artificiais, criados por conveniência pelos romanos (principalmente) para designar bandos, clãs, famílias e outros tipos de sociedades itinerantes compostas por indivíduos muito diferentes entre si, de diversas descendências, muitas delas já romanizadas, e que se juntavam, normalmente, em volta de líderes carismáticos. Por essa via, iam homogenizando-se e adquirindo traços culturais e religiosos característicos, mas nunca foram verdadeiros "povos".
5 - Os santos patronos de Lisboa não são São Vicente, nem Santo António
No mínimo, os padroeiros originais, cujo culto se manteve vivo até ao meados do século XVII. Esses são os santos gémeos São Crispim e São Crispiniano, dois curtidores martirizados na cidade francesa de Soissons, a mando do imperador Diocleciano. O seu culto é celebrado a 25 de Outubro pela Igreja Católica. Quando D. Afonso Henriques conquistou, finalmente, Lisboa, no dia 25 de Outubro de 1147, devotou-a aos santos gémeos desse dia. O Museu da Cidade (Palácio Pimenta) conserva em exposição permanente uma bela tela seiscentista, de artista anónimo, que decorou a Ermida de São Crispim, nas Escadinhas de São Crispim, perto da encosta do Castelo de São Jorge, e que mostra a conquista de Lisboa a ser observada pelos dois gémeos do alto das nuvens. No livro «Os Painéis de S. Vicente de Fora», Theresa M. Schedel de Castello Branco propõe a tese de que a personagem representada duas vezes no célebre políptico do Museu da Arte Antiga de Lisboa, vulgarmente entendida como sendo S. Vicente, é, na verdade, um retrato de São Crispim e de São Crispiniano. Foi nessa tese, e na de que a personagem duplicada é uma representação do Infante D. Fernando, o Infante Santo (avançada por José Saraiva), que me baseei para escrever sobre os Painéis ditos de São Vicente no meu romance «O Evangelho do Enforcado» (Saída de Emergência, 2010), no qual D. Fernando é um fervoroso devoto dos santos gémeos e, por isso, o irmão D. Pedro representa-o dessa forma, em duplicado, no políptico que manda pintar para homenageá-lo.
6 - O retrato mais antigo de Lisboa não está em Lisboa
Está em Cascais, no Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães. Consiste numa iluminura quinhentista, de autor anónimo, integrante na versão mais antiga do códice «Crónica del Rei D. Afonso Henriques, Primeiro Rei Destes Reinos de Portugal», do cronista Duarte Galvão, e que mostra uma imagem do cerco castelhano no Rio Tejo em 1384. Entre o episódio representado na iluminura (imagem no início deste artigo) e a sua data da realização encontra-se um intervalo de cerca de 130 anos e a probabilidade da cidade desenhada se assemelhar à Lisboa dessa época é muito ténue.
7 - Lisboa nunca foi a "cidade branca"
O filme «Dans la Ville Blanche» (1983) de Alain Tanner, com uma bela fotografia de Acácio de Almeida, terá repopularizado junto de algum público estrangeiro a ideia romântica de uma Lisboa luminosa, mediterrânica, indolente, mas essa ideia não poderia estar mais longe da verdade. De facto, até ao terramoto de 1755, Lisboa foi uma cidade de irregularíssima construção medieval, românica e gótica, com ruas muito estreitas e edifícios altos cheios de balcões e sacadas (cuja construção os reis, desde D. Afonso III, nunca foram capazes de uniformizar), pelo que dificilmente a luz do Sol iluminaria, como hoje, grande parte da vida urbana. Se viajássemos no tempo até à Lisboa do passado ficaríamos muito surpreendidos ao descobrir o quão escura ela era. Recorde-se que as construções de estilo românico, como as igrejas - e Lisboa sempre teve inúmeras igrejas - mais as fachadas de algumas casas, eram pintadas com cores fortes e decoradas com frescos. Não temos razão nenhuma para pensar que Lisboa seria uma cidade formada por casinhas brancas, como as das localidades mediterrânicas, até porque a matriz de Lisboa não é apenas mediterrânica, mas atlântica - muito mais rica e multicultural. Lisboa só se tornou verdadeiramente solar, cheia de luz e espaço e edifícios de cores claras, com o traçado urbano regular planeado pelos arquitectos pombalinos na reconstrução da cidade após o Grande Terramoto.
8 - D. José I proibiu o delito olisiponense de pendurar cornos nas portas das casas
Ao longo das eras, o humor popular sempre foi desbragado, grotesco e parodiante. Sabemos que algumas peças humorísticas de teatro representadas no teatro romano de Lisboa se cifravam por um cinismo atroz, mas foram elas que fizeram rir com vontade e alarido os primitivos espectadores olisiponenses (hoje teríamos alguma dificuldade em rir com essas histórias). Nesse sentido, o povo sempre cultivou um humor desafiante à norma, mas "rasca", longe dos gostos mais sofisticados da elite que, muitas vezes, nem sequer gostava de rir, porque o riso, provocando uma reacção física, ao contrário de uma reacção puramente intelectual, não era coisa adequada a um cavalheiro distinto, no pleno controlo das suas emoções. Um dos passatempos preferidos do povo lisboeta nos finais do século XVII e na primeira metade do século XVIII (as fontes históricas não permitem, com efeito, recuar mais do que isto) era pendurar cornos nas portas das casas, dando a entender aos transeuntes que nelas habitavam homens cujas esposas praticavam adultério. Existem relatos que nos dizem que esta brincadeira ganhou contornos muito sérios, de verdadeira obsessão. Algo existiu no espírito da época que fez com que chamar "cornudo" a um vizinho fosse o epítome do bom humor e tão grave se tornou esse bom humor que, no dia 15 de Março de 1751, o rei D. José I viu-se obrigado a intervir e assinou uma lei que proibia o delito de pendurar cornos nas portas. Foi uma das primeiras leis que promulgou, posto que só foi coroado em Setembro do ano anterior. A urgência em parar com a «devassa de pôr cornos» adquire, assim, uma urgência que nos confunde, verdadeiramente, mas vale a pena especular sobre que leis e assuntos nós devotamos toda a importância e que, no futuro, serão (como a "lei dos cornos") considerados insignificantes, esquisitos ou abjectos. (No meu romance «Lisboa Triunfante» [Saída de Emergência, 2008] esta temática é desenvolvida no início do terceiro capítulo «O Reino do Sol».)
9 - As marchas populares de Lisboa só foram inventadas no século XX
As Marchas Populares, em que diversos bairros de Lisboa competem entre si, mediante grupos de amadores que apresentam na rua coreografias de inspiração castiça, não têm nenhuma tradição popular anterior à sua criação em 1932: ano em que esse cortejo se realizou pela primeira vez. Apenas três bairros foram a concurso nessa altura (Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique), mas outros três (Alfama, Alcântara e Madragoa) juntaram-se-lhes somente a título participativo. Os seis grupos desfilaram pelas ruas de Lisboa e terminaram no Parque Mayer, em frente ao Teatro Capitólio. Antes das Marchas Populares, existia o costume da chamada Marcha ao Flambó, aportuguesamento da francesa Marche aux Flambeaux: pequeno cortejo brejeiro, sem nenhuma encenação ou orientação temática que encarnasse as ditas características dos vários bairros lisboetas, como as marchas intentam. Especula-se que talvez tivesse sido um resíduo da passagem dos militares franceses no nosso país, aquando das invasões napoleónicas, que costumavam organizar essas coreografias "vadias", com tochas acesas nas mãos. Por outro lado, a Festa do Entrudo também era muitíssimo popular e nos tempos da Primeira República os desfiles carnavalescos que tomavam de assalto o Rossio surpreendiam pela sofisticação dos carros e das máscaras. Até que ponto a Marcha ao Flambó e a Festa do Entrudo, festejadas com balões de papel, flores, arcos e fogos-de-vistas, influenciaram a génese das Marchas Populares é conjectural, mas antecederam-lhes e possuem uma estética similar. O pai das Marchas Populares foi o cineasta lisboeta José Leitão de Barros, que aproveitou a existente tradição popular da festa de Santo António para lhe adicionar uma espécie de selo folclórico. Íntimo de António Ferro (o criador do Secretariado da Propaganda Nacional), Leitão de Barros imaginou as Marchas Populares como sendo a resposta a um desafio que lhe foi lançado por Campos Figueira, director do Parque Mayer, que também patrocinou a produção do evento. Na altura, Barros mantinha o cargo de director do Diário de Notícias, no qual trabalhava o jornalista e olissipógrafo Norberto de Araújo (co-fundador do grupo Amigos de Lisboa, do qual também foi sócio fundador o artista Almada Negreiros), que viria a ser autor das letras mais conhecidas das Marchas Populares (com músicas de Raul Ferrão), como «Lá Vai Lisboa», «Olha o Manjerico», «Marcha dos Centenários» e «Noite de Santo António».
10 - O mais antigo brasão em pedra de Lisboa está no chafariz do Largo do Andaluz
O chafariz do Largo do Andaluz foi um bebedouro estratégico na via medieval mais importante que entrava em Lisboa, pelas Portas de Santo Antão, e que, até aí, seguia sobre uma velha estrada romana. (A Rua das Portas de Santo Antão foi a artéria mais importante do centro de Lisboa até à construção da Avenida da Liberdade, caindo desde essa altura em rápida deterioração.) O chafariz funcionou até 1945 e ainda existe (embora, remodelado, pouco se assemelhe ao original), ostentando o brasão da cidade de Lisboa e a pedra de armas de D. Afonso IV; na legenda que os acompanham pode ler-se «Na era de 1374, o concelho de Lisboa mandou fazer esta fonte a serviço de Deus e do nosso Senhor Rei Dom Afonso, por Gil Esteves, tesoureiro da dita cidade, e Afonso Soares, escrivão. A Deus graças.» Em rigor, a data de construção do chafariz é 1336. Porquê? Porque é sempre preciso subtrair trinta e oito anos às datas portuguesas inscritas antes de 1422 d.C., porque só nesse ano (a 22 de Agosto) é que D. João I decretou que se passasse a usar o calendário cristão em vez do juliano para assinalar a passagem dos anos. Assim, a chamada Era Hispânica, em vigor na Península Ibérica desde o século V, foi substituída pela Era Cristã: nesse sentido, o ano de 1460 da Era Hispânica passou a datar-se como sendo o ano de 1422 da Era Cristã. A transição de uma era para a outra não foi fácil e durante muito tempo não faltou quem ainda datasse os acontecimentos pela Era Hispânica, mesmo os indivíduos mais eruditos; como o cronista Gomes Eanes de Zurara que descreveu, erroneamente, a conquista da cidade norte-africana de Ceuta como tendo ocorrido no ano de 1450 (em «Crónica da Tomada de Ceuta»). Só com a introdução do calendário gregoriano (a 15 de Outubro de 1582) se estabeleceu em definitivo o dia 1 de Janeiro para marcar o início do ano. O brasão de Lisboa que pode ver-se no chafariz do Largo do Andaluz é o mais antigo brasão - em pedra - que existe na cidade. O brasão mais antigo de todos está no Convento de Santos-o-Novo e consiste numa impressão lacrada num documento datado de 1233.
Dez Coisas Que Desconheciam Sobre Lisboa
1 - Lisboa é mais velha que Roma
De acordo com os mais antigos vestígios arqueológicos encontrados nas explorações do claustro da Sé, Lisboa foi fundada por viajantes fenícios. Em rigor, foi fundada por indivíduos provenientes de uma ou de várias das muitas cidades-estados portuárias que formaram a civilização canaanita (Tiro, Sidon, etc.), porque a palavra «fenício» é apenas uma alcunha que deriva do nome grego «phoiníké» que significa, mais ou menos, «avermelhado»: uma alusão ao corante púrpura que aquela civilização ficou famosa por extrair de um pequeno molusco marinho, chamado murex, usado para tingir tecidos e vestes destinados à realeza. Os fenícios navegaram para longe em busca de estanho para fazerem bronze (o bronze é um metal dúctil que se obtém misturando estanho com cobre) e a Península Ibérica sempre foi rica em estanho. Foi, pois, em 1200 a.C. (século XIII a.C.) que os navegantes fenícos fizeram um pequeno posto comercial no território que, mais à frente, se haveria de chamar Lisboa. Por outro lado, Roma só foi fundada em meados do século VIII a.C. (cerca de 753 a.C.).
2 - Ninguém sabe de onde veio o nome «Lisboa»
A verdade é que não sabemos de onde vem o nome «Lisboa». Uma hipótese que tem sido esquecida é a de que, na foz, o Tejo costumava ser chamado de Lisidan ou Lusidan: nomes cujo prefixo «Lis», de raiz indo-europeia e que se encontra, também, com menores variações no galês e no bretão, poderão significar «brilhante» ou «luminoso». Porém, uma hipótese mais credível é a de que «Lisboa» provém de um nome fenício: «alis ubo», que significa «enseada amena». Na passagem do século III para o II a.C., no contexto das Guerras Púnicas, os romanos conquistaram aos cartagineses a Península Ibérica, a que chamaram Península Hispânica («ibérica» era uma designação grega, mas, nesta altura, «hispânica» nada tinha a ver com «Espanha») e foi nessa sequência de eventos que a primitiva "Lisboa" se transformou num município romano, a que se deu, depois, o nome oficial de Felicitas Julia Olisipo, adoptando o topónimo existente. A ideia tão romanceada de que foi fundada por Ulisses, aquando dos seus dez anos de errância marítima (terminada a guerra de Tróia), que a terá baptizado de Ulisippo, é uma fantasia que nem na etimologia se sustenta, pois, em grego, Ulisses chama-se Odysseus e é evidente que desse nome nunca poderia ter derivado o de Ulisippo. O nome «Lisboa» provém directamente de «Lixbõa»: a versão árabe do acusativo da palavra romana «Olisipo», que é «Olisipona».
3 - Lisboa não tem sete colinas
A ideia de que Lisboa foi fundada sobre sete colinas é uma invenção para inscrevê-la no rol de importantes cidades clássicas que arrogaram a tradição, mais ou menos poética, de terem sido fundadas sobre sete colinas, como Roma, Jerusalém ou Meca. Na verdade, é uma tradição que menoriza Lisboa, porque esta nunca teve, apenas, sete colinas: Lisboa tem onze colinas. Numa delas (um extinto vulcão pré-histórico), fica o Forte do Marquês de Sá da Bandeira (Forte da Serra de Monsanto), na freguesia de Benfica, que é o local mais alto da cidade, com quase 230 metros de altitude (são 227 metros); muitíssimo acima do Castelo de São Jorge - tantas vezes laureado, injustificadamente, como sendo o local mais alto da cidade. O bairro mais alto da cidade também não é o Bairro Alto, mas o de Campolide, com o qual rivalizam as cotas mais elevadas das zonas de Telheiras e de Carnide.
4 - Lisboa sempre foi uma cidade multicultural
Não pensem que só agora é que Lisboa é uma cidade multicultural. Aliás, uma das melhores provas de que Lisboa, mesmo após a reconquista, manteve o multiculturalismo que lhe era reconhecido, ou seja as suas matrizes judaicas, árabes e outras, é a de que demorou vinte e três anos a receber carta de foral de D. Afonso Henriques, desde 1147 até 1170. O que é que isto significa? Significa que Lisboa precisou de vinte e três anos para reunir um número satisfatório de cristãos, porque somente com uma comunidade numerosa de cristãos podia ser autorizada a criação de uma câmara para a cidade se governar a si própria. Por outro lado, isto também indica que a população de Lisboa continuava a ser pouco numerosa, tal como no período romano. Sabemos que a lotação do teatro romano, descoberto na encosta do Castelo de São Jorge, depois do Grande Terramoto de 1755, era de cinco mil lugares e tinha, apenas, 60 metros de diâmetro - não chegava a ser um teatro de dimensões médias. Fica a informação de que quem entregou Lisboa, em 469, aos Suevos, grupo multi-étnico vindo da zona do Mar Báltico, foi o governador romano Lusídio. Todavia, os suevos não gozaram nada da cidade, porque foram, ainda nesse ano, expulsos pelos Visigodos: outro grupo multi-étnico, oriundo do Norte da Europa. Estes nomes colectivos (visigodos, ostrogodos, suevos ou vândalos, por exemplo) são nomes artificiais, criados por conveniência pelos romanos (principalmente) para designar bandos, clãs, famílias e outros tipos de sociedades itinerantes compostas por indivíduos muito diferentes entre si, de diversas descendências, muitas delas já romanizadas, e que se juntavam, normalmente, em volta de líderes carismáticos. Por essa via, iam homogenizando-se e adquirindo traços culturais e religiosos característicos, mas nunca foram verdadeiros "povos".
5 - Os santos patronos de Lisboa não são São Vicente, nem Santo António
No mínimo, os padroeiros originais, cujo culto se manteve vivo até ao meados do século XVII. Esses são os santos gémeos São Crispim e São Crispiniano, dois curtidores martirizados na cidade francesa de Soissons, a mando do imperador Diocleciano. O seu culto é celebrado a 25 de Outubro pela Igreja Católica. Quando D. Afonso Henriques conquistou, finalmente, Lisboa, no dia 25 de Outubro de 1147, devotou-a aos santos gémeos desse dia. O Museu da Cidade (Palácio Pimenta) conserva em exposição permanente uma bela tela seiscentista, de artista anónimo, que decorou a Ermida de São Crispim, nas Escadinhas de São Crispim, perto da encosta do Castelo de São Jorge, e que mostra a conquista de Lisboa a ser observada pelos dois gémeos do alto das nuvens. No livro «Os Painéis de S. Vicente de Fora», Theresa M. Schedel de Castello Branco propõe a tese de que a personagem representada duas vezes no célebre políptico do Museu da Arte Antiga de Lisboa, vulgarmente entendida como sendo S. Vicente, é, na verdade, um retrato de São Crispim e de São Crispiniano. Foi nessa tese, e na de que a personagem duplicada é uma representação do Infante D. Fernando, o Infante Santo (avançada por José Saraiva), que me baseei para escrever sobre os Painéis ditos de São Vicente no meu romance «O Evangelho do Enforcado» (Saída de Emergência, 2010), no qual D. Fernando é um fervoroso devoto dos santos gémeos e, por isso, o irmão D. Pedro representa-o dessa forma, em duplicado, no políptico que manda pintar para homenageá-lo.
6 - O retrato mais antigo de Lisboa não está em Lisboa
Está em Cascais, no Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães. Consiste numa iluminura quinhentista, de autor anónimo, integrante na versão mais antiga do códice «Crónica del Rei D. Afonso Henriques, Primeiro Rei Destes Reinos de Portugal», do cronista Duarte Galvão, e que mostra uma imagem do cerco castelhano no Rio Tejo em 1384. Entre o episódio representado na iluminura (imagem no início deste artigo) e a sua data da realização encontra-se um intervalo de cerca de 130 anos e a probabilidade da cidade desenhada se assemelhar à Lisboa dessa época é muito ténue.
7 - Lisboa nunca foi a "cidade branca"
O filme «Dans la Ville Blanche» (1983) de Alain Tanner, com uma bela fotografia de Acácio de Almeida, terá repopularizado junto de algum público estrangeiro a ideia romântica de uma Lisboa luminosa, mediterrânica, indolente, mas essa ideia não poderia estar mais longe da verdade. De facto, até ao terramoto de 1755, Lisboa foi uma cidade de irregularíssima construção medieval, românica e gótica, com ruas muito estreitas e edifícios altos cheios de balcões e sacadas (cuja construção os reis, desde D. Afonso III, nunca foram capazes de uniformizar), pelo que dificilmente a luz do Sol iluminaria, como hoje, grande parte da vida urbana. Se viajássemos no tempo até à Lisboa do passado ficaríamos muito surpreendidos ao descobrir o quão escura ela era. Recorde-se que as construções de estilo românico, como as igrejas - e Lisboa sempre teve inúmeras igrejas - mais as fachadas de algumas casas, eram pintadas com cores fortes e decoradas com frescos. Não temos razão nenhuma para pensar que Lisboa seria uma cidade formada por casinhas brancas, como as das localidades mediterrânicas, até porque a matriz de Lisboa não é apenas mediterrânica, mas atlântica - muito mais rica e multicultural. Lisboa só se tornou verdadeiramente solar, cheia de luz e espaço e edifícios de cores claras, com o traçado urbano regular planeado pelos arquitectos pombalinos na reconstrução da cidade após o Grande Terramoto.
8 - D. José I proibiu o delito olisiponense de pendurar cornos nas portas das casas
Ao longo das eras, o humor popular sempre foi desbragado, grotesco e parodiante. Sabemos que algumas peças humorísticas de teatro representadas no teatro romano de Lisboa se cifravam por um cinismo atroz, mas foram elas que fizeram rir com vontade e alarido os primitivos espectadores olisiponenses (hoje teríamos alguma dificuldade em rir com essas histórias). Nesse sentido, o povo sempre cultivou um humor desafiante à norma, mas "rasca", longe dos gostos mais sofisticados da elite que, muitas vezes, nem sequer gostava de rir, porque o riso, provocando uma reacção física, ao contrário de uma reacção puramente intelectual, não era coisa adequada a um cavalheiro distinto, no pleno controlo das suas emoções. Um dos passatempos preferidos do povo lisboeta nos finais do século XVII e na primeira metade do século XVIII (as fontes históricas não permitem, com efeito, recuar mais do que isto) era pendurar cornos nas portas das casas, dando a entender aos transeuntes que nelas habitavam homens cujas esposas praticavam adultério. Existem relatos que nos dizem que esta brincadeira ganhou contornos muito sérios, de verdadeira obsessão. Algo existiu no espírito da época que fez com que chamar "cornudo" a um vizinho fosse o epítome do bom humor e tão grave se tornou esse bom humor que, no dia 15 de Março de 1751, o rei D. José I viu-se obrigado a intervir e assinou uma lei que proibia o delito de pendurar cornos nas portas. Foi uma das primeiras leis que promulgou, posto que só foi coroado em Setembro do ano anterior. A urgência em parar com a «devassa de pôr cornos» adquire, assim, uma urgência que nos confunde, verdadeiramente, mas vale a pena especular sobre que leis e assuntos nós devotamos toda a importância e que, no futuro, serão (como a "lei dos cornos") considerados insignificantes, esquisitos ou abjectos. (No meu romance «Lisboa Triunfante» [Saída de Emergência, 2008] esta temática é desenvolvida no início do terceiro capítulo «O Reino do Sol».)
9 - As marchas populares de Lisboa só foram inventadas no século XX
As Marchas Populares, em que diversos bairros de Lisboa competem entre si, mediante grupos de amadores que apresentam na rua coreografias de inspiração castiça, não têm nenhuma tradição popular anterior à sua criação em 1932: ano em que esse cortejo se realizou pela primeira vez. Apenas três bairros foram a concurso nessa altura (Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique), mas outros três (Alfama, Alcântara e Madragoa) juntaram-se-lhes somente a título participativo. Os seis grupos desfilaram pelas ruas de Lisboa e terminaram no Parque Mayer, em frente ao Teatro Capitólio. Antes das Marchas Populares, existia o costume da chamada Marcha ao Flambó, aportuguesamento da francesa Marche aux Flambeaux: pequeno cortejo brejeiro, sem nenhuma encenação ou orientação temática que encarnasse as ditas características dos vários bairros lisboetas, como as marchas intentam. Especula-se que talvez tivesse sido um resíduo da passagem dos militares franceses no nosso país, aquando das invasões napoleónicas, que costumavam organizar essas coreografias "vadias", com tochas acesas nas mãos. Por outro lado, a Festa do Entrudo também era muitíssimo popular e nos tempos da Primeira República os desfiles carnavalescos que tomavam de assalto o Rossio surpreendiam pela sofisticação dos carros e das máscaras. Até que ponto a Marcha ao Flambó e a Festa do Entrudo, festejadas com balões de papel, flores, arcos e fogos-de-vistas, influenciaram a génese das Marchas Populares é conjectural, mas antecederam-lhes e possuem uma estética similar. O pai das Marchas Populares foi o cineasta lisboeta José Leitão de Barros, que aproveitou a existente tradição popular da festa de Santo António para lhe adicionar uma espécie de selo folclórico. Íntimo de António Ferro (o criador do Secretariado da Propaganda Nacional), Leitão de Barros imaginou as Marchas Populares como sendo a resposta a um desafio que lhe foi lançado por Campos Figueira, director do Parque Mayer, que também patrocinou a produção do evento. Na altura, Barros mantinha o cargo de director do Diário de Notícias, no qual trabalhava o jornalista e olissipógrafo Norberto de Araújo (co-fundador do grupo Amigos de Lisboa, do qual também foi sócio fundador o artista Almada Negreiros), que viria a ser autor das letras mais conhecidas das Marchas Populares (com músicas de Raul Ferrão), como «Lá Vai Lisboa», «Olha o Manjerico», «Marcha dos Centenários» e «Noite de Santo António».
10 - O mais antigo brasão em pedra de Lisboa está no chafariz do Largo do Andaluz
O chafariz do Largo do Andaluz foi um bebedouro estratégico na via medieval mais importante que entrava em Lisboa, pelas Portas de Santo Antão, e que, até aí, seguia sobre uma velha estrada romana. (A Rua das Portas de Santo Antão foi a artéria mais importante do centro de Lisboa até à construção da Avenida da Liberdade, caindo desde essa altura em rápida deterioração.) O chafariz funcionou até 1945 e ainda existe (embora, remodelado, pouco se assemelhe ao original), ostentando o brasão da cidade de Lisboa e a pedra de armas de D. Afonso IV; na legenda que os acompanham pode ler-se «Na era de 1374, o concelho de Lisboa mandou fazer esta fonte a serviço de Deus e do nosso Senhor Rei Dom Afonso, por Gil Esteves, tesoureiro da dita cidade, e Afonso Soares, escrivão. A Deus graças.» Em rigor, a data de construção do chafariz é 1336. Porquê? Porque é sempre preciso subtrair trinta e oito anos às datas portuguesas inscritas antes de 1422 d.C., porque só nesse ano (a 22 de Agosto) é que D. João I decretou que se passasse a usar o calendário cristão em vez do juliano para assinalar a passagem dos anos. Assim, a chamada Era Hispânica, em vigor na Península Ibérica desde o século V, foi substituída pela Era Cristã: nesse sentido, o ano de 1460 da Era Hispânica passou a datar-se como sendo o ano de 1422 da Era Cristã. A transição de uma era para a outra não foi fácil e durante muito tempo não faltou quem ainda datasse os acontecimentos pela Era Hispânica, mesmo os indivíduos mais eruditos; como o cronista Gomes Eanes de Zurara que descreveu, erroneamente, a conquista da cidade norte-africana de Ceuta como tendo ocorrido no ano de 1450 (em «Crónica da Tomada de Ceuta»). Só com a introdução do calendário gregoriano (a 15 de Outubro de 1582) se estabeleceu em definitivo o dia 1 de Janeiro para marcar o início do ano. O brasão de Lisboa que pode ver-se no chafariz do Largo do Andaluz é o mais antigo brasão - em pedra - que existe na cidade. O brasão mais antigo de todos está no Convento de Santos-o-Novo e consiste numa impressão lacrada num documento datado de 1233.