A conferência «Pensar o Futuro – Um Estado para a Sociedade», decorrida no Palácio Foz, em Lisboa, foi um evento esfíngico, à porta fechada, sem a intervenção da sociedade civil, cuja matéria em discussão (a transformação do Estado) é do seu maior interesse; segundo a organizadora Sofia Galvão (ex-secretária de estado da presidência do conselho de ministros e ex-secretária de estado da administração pública no governo liderado por Pedro Santana Lopes), conferenciou-se sob a égide da chamada Chatham House Rule (Regra de Chatham House) para que os convidados pudessem falar livremente, sem a preocupação de serem citados verbatim pela comunicação social.
A Regra de Chatham House (que vai buscar o nome ao Royal Institute of International Affairs, cuja sede é a proverbial Chatham House: think tank de elite, criado em 1920 por Robert Cecil, o "pai" da Liga das Nações) foi criada para que os intervenientes nas conferências desse grupo não sejam identificados na comunicação social, embora esta esteja à vontade para transcrever o que é discutido na reunião, de acordo com uma autorização prévia - o que isto significa, em bom português, é que os jornalistas não podem associar os nomes das pessoas às palavras que elas disseram. Mesmo assim, os (poucos) jornalistas portugueses que assistiram a esta conferência portuguesa sobre a refundação do estado português (leia-se "refundação do estado social português") não tiveram o mesmo grau mínimo de liberdade: proibidos de filmar, gravar e transcrever, somente puderam observar e terão de aguardar o digest do evento, com dois minutos de duração, apenas, que lhes será fornecido pelo governo (mais precisamente por Carlos Moedas, o secretário de estado adjunto do primeiro-ministro).
Dizer que se usou a Regra de Chatham House numa conferência até poderá dar uma impressão de sofisticação (consigo imaginar Vasco Santana de olhos arregalados a dizer ao ouvido de António Silva, enquanto este coça a nuca, "vê lá tu que foi uma conferência tão importante, mas tão importante, que até se usou a Regra de Chatham House..."), mas a dita regra só tem, de facto, um objectivo, que de sofisticado nada tem: o de desresponsabilizar os oradores, porque, bem vistas as coisas, somente o registo fidedigno da comunicação social - da imprensa livre - tem poder para chamar os indivíduos à colação e responsabilizá-los pelo que disseram e fizeram. Isto significa que os convidados de uma conferência em que vigore a Regra de Chatham House podem exprimir à vontade as ideias, opiniões, recomendações e as propostas mais repugnantes, porque têm em mente que o público nunca saberá o quão são indivíduos monstruosos.
Esta conferência à porta fechada num salão do Palácio Foz vale o que vale e não adianta imprimir-lhe uma tónica de desconfiança maior do que ela provavelmente merece; muitas mais reuniões à porta fechada terão sido bem mais importantes e dramáticas que esta, certamente. Contudo, o que importa reter desta situação nem sequer é a própria conferência, mas a conjuntura actual em que ela decorreu, que facilita fenómenos (como este) de desvios à democracia.
À guisa de postal-ilustrado de uma época, vale a pena lembrar o veto que o Tribunal Constitucional deu em Julho de 2012 à decisão do governo de cortar os subsídios de férias e de Natal aos funcionários públicos e pensionistas, porque violava o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Em Outubro do mesmo ano, o magistrado António Martins, numa entrevista que deu ao jornal Expresso, respondeu desta maneira a uma pergunta do jornalista Micael Pereira: «[pergunta] não há exceções que tornem o corte [dos subsídios] legítimo? [resposta] Há o estado de emergência e o estado de sítio, em que os direitos das pessoas podem ser comprimidos ou suspensos durante algum tempo. Mas não foi decretado o estado de sítio ou o estado de emergência. E não o tendo sido decretado, o Estado continua sujeito ao respeito dos direitos dos cidadãos.» Por coincidência, sete meses depois, a 11 de Maio de 2012, foi publicada no Diário da República uma revisão à lei orgânica referente, precisamente, aos regimes de Estado de Sítio e de Estado de Emergência, que altera os artigos 7.º, 12.º, 14.º, 15.º, 16.º, 20.º, 23.º, 25.º, e 28.º da lei anterior (lei n.º 44/86). Enquadrando estas alterações legislativas num quadro internacional, não deixa de ser interessante acrescentar que, em Junho de 2012, Espanha criou o delito algo "orwelliano" de "resistência pacífica". Em suma: só o simples acto de se protestar de modo pacífico numa manifestação pública poderá ser criminalizado.
Um observador mais desconfiado seria levado a suspeitar que está a assistir-se a uma inquietação incomum da parte de governos (ainda) democráticos que têm draconianas medidas de austeridade para impor a todo o custo e temem, por culpa dessa pressão, a desobediência e a revolta dos cidadãos. Mas esse mesmo observador desconfiado depressa veria que não existem motivos para preocupações, porque a sociedade civil está atenta. Percebe-se, de imediato, pelas publicações que preencheram os murais das redes sociais nos últimos dias, que a informação rigorosa e importante circula a cada momento: é o caso do cão assassino que matou o bebé de dezoito meses e que possui uma petição pública com milhares de assinaturas de indivíduos que, aparentemente, já não distinguem o certo do errado, nem o relevante do irrelevante; é o vergonhoso linchamento em massa da pobre Pêpa só porque ela disse que queria comprar uma mala de marca Chanel com o dinheiro ganho com o seu próprio trabalho, como se querer comprar seja o que for com o nosso próprio dinheiro fosse um crime; enfim, uma porção de bons exemplos que demonstram como a sociedade civil é madura, esclarecida, activa, participativa, inteligente. Com efeito, o observador desconfiado não tem motivos para preocupar-se.
Alteração à Lei do Estado de Sítio e do Estado de Emergência: http://dre.pt/pdf1sdip/2012/05/09200/0246502470.pdf
Entrevista de António Martins: http://www.inverbis.pt/2007-2011/juizes/estado-nao-tem-direito-pagar-uns-nao-outros.html
Sobre o crime de "resistência pacífica": http://www.publico.es/espana/429078/interior-considerara-la-resistencia-pasiva-un-atentado-a-la-autoridad