Nos 700 anos da morte de Dante

No passado Domingo, dia 10 de Outubro, dei no evento Fórum Fantástico, com moderação do jornalista João Morales, uma palestra sobre o poeta florentino Dante Alighieri. A esta distância, esse momento no tempo quase me parece ser uma espécie de reflexo invertido do século XIV – pois nós em 2021 ignoramos se estamos, efectivamente, a sair de uma pandemia, ao passo que em 1321 Dante e seus contemporâneos desconheciam completamente que daí a pouco mais de vinte anos estariam a entrar numa: a de Peste Negra. Outras semelhanças existem entre o tempo de Dante e o nosso (nem todas tão terríveis – mas, mesmo assim, nem todas boas…); não obstante, o objectivo deste texto é o de apresentar de modo conciso algumas ideias que expressei na minha conferência; em principal, a de que Dante foi o avô do Renascimento.  

O escritor T. S. Eliot considerou no livro Dante que o poeta florentino nascido em 1265 e falecido em 1321 repartia em importância o mundo com o dramaturgo inglês William Shakespeare; este explorara a largueza da alma, enquanto o primeiro revelara o abismo e o pináculo a que esta poderia derruir ou ascender – por outras palavras, Shakespeare seria horizontal e Dante vertical. Creio que se esqueceu de Camões, que incluo pela sua esfericidade: não é somente horizontal ou vertical, mas global. Porém, este texto é sobre Dante Alighieri, cujo nome traduzo com poesia para português como sendo o Perpetuamente Alado, já que Dante – diminutivo do nome italiano Durante – significa “duradouro” e o apelido Alighieri transpõe-se para a nossa língua como “apetrechado de asas”.

Dante não foi renascentista, mas medieval e representa aquilo que a Idade Média alcançou de avançado nas letras e nas ciências; ideia encapsulada nas palavras do próprio quando escreveu que deteriorara a visão pelas constantes leituras e pela observação das estrelas. Não obstante, penso que pode ser identificado como o mensageiro ou o avô do Renascimento, pois um áxis da civilização renascentista inaugura-se na Comédia: a ideia de que o Império Romano foi um utensílio de Deus para o aperfeiçoamento humano. Encontrei inclusive um eco dessa alfaia histórico-filosófica na ópera Il Sant’ Alessio (1631), com música do compositor italiano Stefano Landi e com libreto do eclesiástico italiano Giulio Rospiglioni – que daí a trinta e seis anos seria eleito papa, com o nome de Clemente IX: no prólogo que precede o Primeiro Acto, Roma antropomorfizada diz ter sido célebre no período do antigo império, mas declara que sob a égide da Igreja alcançou um império ainda mais insigne e eterno – ora, esta intersecção entre Império Romano e Era Cristã é substancial ao programa “político” que é a Comédia, interligamento da moral cristã com o pagão virgiliano. Na mentalidade dantiana, trair César é tão grave como trair Cristo; e é por essa razão que Lúcifer, tafulho do funil que é o Inferno, consome em perpetuidade com as suas três fauces os traidores Bruto, Cássio e Judas: nessa cosmovisão, a paixão de Cristo legitima a existência do Império Romano e Cristo é a sua ligação com a Igreja. No final do Purgatório na Comédia, Cristo surge no Paraíso Terreal em forma de grifo, híbrido que simboliza as suas duas naturezas, humana e divina. Terminando de puxar o carro que traz Beatriz – amor platónico de Dante, aqui transfigurada em Sibila –, o grifo amarra-lhe o timão ao tronco de uma árvore ressecada que está no jardim; de imediato, ela reverdece em primaveril profusão de folhas, flores e frutos: é uma alegoria para a união da Igreja (o carro de Beatriz) e do Império (a árvore-seca). Enquanto metáfora de um império cristão universal, a imagem da árvore-seca também é mencionada, por exemplo, na obra As Viagens de Sir John Mandeville (c. 1356-1357), em que o protagonista ficcional relata ter visto na região próximo-oriental de Hebrom, no Monte Mamre, um terebinto imemorial que secou no momento em que Cristo morreu na cruz; esta árvore-seca vicejaria novamente quando o Príncipe do Ocidente (aqui, “príncipe” tem a acepção romana de “imperador”) rezasse uma missa debaixo dos seus ramos depois de conquistar Jerusalém – o reverdecimento da árvore-seca produziria, então, o efeito de converter todos os povos à cristandade.

Com efeito, Dante não se confecciona como poeta do amor, mas como poeta da rectidão moral – como severo poeta-profeta, no sentido em que um profeta é quem ensina como viver no tempo eleito. Para Dante-Jeremias, o tempo eleito será aquele em que se viverá em pleno a teoria de sua invenção das duas felicidades: uma terrena, material, guiada pelo imperador do Sacro-Império Romano-Germânico; e outra espiritual, imaterial, guiada pelo papa – espécie de terceira-via entre as fundamentalistas facções guelfas (papais) e gibelinas (imperiais) que laceraram com sanha genocidária as cidades e as famílias italianas no decurso da Idade Média, longo conflito vertido nas lutas entre guelfos brancos (moderados) e negros (ultra-papistas) em que radica o exílio de Dante, decretado em 1302.

Falando em exílio, a fabulosa e original geogonia que Dante dá na Comédia para a imensidão de água sem terra que à sua altura se acreditava ser o hemisfério sul relaciona-se com a queda de Lúcifer: exilado do Empíreo, o anjo mau precipita-se vertiginosamente na direcção do mundo terreno e à sua aproximação a horrorizada terra meridional recua inteiramente para o hemisfério norte; ao cair, o Diabo cria com o impacto subterrâneo a elevação da montanha do Purgatório. Purgatorial foi, também, o sentimento de enlevo que arrebatou o espírito de quem, finalmente, pôde assistir ao vivo um novo Fòrum Fantástico presencial, com todas as dimensões humanas que se deslindaram dessa ocorrência: as horizontais, as verticais e as esféricas. Como mordaças fora do prazo de validade, as já conspícuas máscaras nos rostos não impediram que as autênticas expressões dos indivíduos fossem trazidas à Revelação; e, tudo somado, experienciou-se uma dantiana ascensão do Inferno.

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